Belém – O arquiteto Paulo Chaves Fernandes permanece há vinte anos dando as cartas na política cultural do Pará. Ligado a governos do PSDB, ele comandou a Secretaria Estadual de Cultura durante quase todo esse período (interrompido uma única vez, pela gestão de Ana Júlia Carepa, PT, entre 2007 e 2010). Entretanto, a longevidade não se sustenta no desejo da sociedade. Ao menos é o que faz crer a onda de protestos contra o governo do estado, especialmente nas últimas semanas, em Belém.
Artistas e intelectuais deixaram os palcos, ateliês, estúdios e academia e ganharam as ruas da capital paraense reunidos em um movimento batizado de Chega!, que deflagrou manifestações de parar o trânsito. É gente que exige a saída do secretário, a abertura de canais de discussão da política pública e a criação de editais para descentralizar verbas, fomentar a produção, a circulação e o acesso do povo às atividades artísticas.
Na carta pública lida pelo ator Alberto Silva Neto no dia 9 passado, durante um dos festivais organizados pelo governo, o Terruá Pará, o movimento afirmou que tem como tarefa “tornar representativa uma política que há décadas não representa nem a sociedade nem os artistas, e que tem caminhado na contramão do interesse público”.
Seguiram-se duas passeatas pelas ruas de Belém (a última no dia 25), na direção da Secretaria de Cultura (Secult). Em ambas, os manifestantes encontraram os portões trancados e promoveram a ocupação das calçadas, com a participação de grupos de teatro, música, artistas plásticos e até integrantes de uma escola de samba. Na ausência de uma fala oficial, fizeram também a leitura de uma carta de demissão simbólica do secretário.
A permanência de Chaves por tão longo período é justificada pela administração com o argumento de que com ele iniciou-se uma boa fase de recuperação do patrimônio histórico. As obras teriam incrementado o turismo.
Exemplo deste tipo de intervenção na paisagem urbana é a Estação das Docas, inaugurada em 2000 sob projeto arquitetônico do próprio secretário. A obra ocupa três galpões do antigo porto de Belém, inaugurado em 1909, agora transformado em complexo turístico. A Estação das Docas abriu janela para a Baía do Guajará, que banha a cidade, e agrega em 500 metros de orla restaurantes, teatro e stands de vendas de produtos regionais.
Entretanto, mesmo procedimentos como este, uma espécie de vitrine da gestão, sofrem fortes críticas. As acusações são de que eles não são feitos para usufruto da população em geral. Estariam mais interessados em alimentar o imaginário extemporâneo de uma elite rentista, na chave belle époque que remete ao ciclo econômico da borracha ocorrido nas últimas décadas do século XIX, quando Belém fora chamada a “Paris da América”.
Entre as vozes rebeladas está a do jornalista Lúcio Flavio Pinto, um dos maiores especialistas em assuntos relacionados à região Amazônica.
Para exemplificar o que chama de “visão elitista, autoritária e intervencionista da cultura” ele se refere a duas das obras de Chaves: a intervenção no Forte do Castelo (marco fundador da cidade) e a Igreja de Santo Alexandre (antigo complexo jesuíta de fins do séc XVII, transformado no Museu de arte sacra do Pará):
“Ele pôs abaixo o muro do Forte do Castelo. Realmente a fortificação ganhou destaque, mas o muro era um componente histórico, não podia simplesmente ser eliminado. O que ele fez em Santo Alexandre foi pior ainda. Eliminou a igreja, reduzindo-a a local de casamento para ricos, que podem pagar as altas taxas cobradas. No restante do tempo a igreja é um museu - e insípido. Santo Alexandre deveria continuar a desempenhar sua função litúrgica e ser acessível a todos, não apenas a enricadas família casadoiras. Só respeita o testemunho histórico dos prédios e das outras formas de expressão da cultura no limite da criatividade dele, do seu desejo de impor sua marca”.
A acusação de arrogância e distância das bases é compartilhada nos bastidores do próprio governo. O folclore que empresta ao secretário apelidos nada elogiosos, como “o pavão misterioso” da cultura, não impediu que o mesmo permanecesse até aqui como uma espécie de mal necessário à gestão tucana. Ele parece não se importar.
Não faltam exemplos em que a gestão pública é pintada com o verniz da vaidade. O mais flagrante entre todos provavelmente é o retrato de si próprio e em tamanho gigante que Chaves mandou afixar em parede inteira do teatro Maria Sylvia Nunes, no mesmo complexo Estação das Docas. Mais que a homenageada – pesquisadora do teatro e viúva do filósofo Benedito Nunes –, o secretário julgou que era a sua própria imagem a que deveria iluminar o caminho para a entrada do público.
Se por um lado ações como esta causam algum eventual constrangimento e desgaste político – que só agora periga incomodar – por outro há a visibilidade de obras que mesmo questionadas deixam, na avaliação do PSDB, bom saldo político.
Baixo aproveitamento social
O economista Valcir Santos, coordenador do Fórum de Cultura de Belém, reforça a leitura de que há contradição entre o que parece saltar aos olhos e o seu aproveitamento social – um dos argumentos das lideranças do movimento.
“É uma política presunçosa, que no caso das obras se caracteriza por intervenções pontuais e com pouca relação com o seu entorno. São enclaves, condomínios fechados, como é o caso da Estação das Docas, que praticamente não tem relação com o Ver-o-Peso, o que é um absurdo, pois se trata não só do principal cartão postal de Belém, como também a expressão da diversidade cultural da cidade, sobretudo pela relações de trocas simbólicas e de produtos envolvendo a cultura ribeirinha e as diversas manifestações da cultura contemporânea.”
A falta de ações direcionadas ao interior do estado também é crítica recorrente: “Os projetos de interiorização elaborados pelos técnicos da Secult foram, sistematicamente, abortados. O modelo da capital foi apresentado ao interior como um modelo a ser imitado, sem que, no entanto, lhe fosse cedido meios para o fazer”, diz o professor da Universidade Federal do Pará e jornalista Fabio Castro.
Na peça orçamentária colocada à disposição pela Secretaria de Planejamento e finanças (Sepof), não é difícil identificar estas assimetrias.
O orçamento da Secretaria de Cultura totaliza em torno de R$ 98 milhões projetados para 2013. Chama a atenção o fato de que há poucas referências a ações de interiorização (para a interiorização da orquestra do Teatro da Paz são previstos R$ 650 mil). É evidente o contraste entre o volume de recursos destinados à “realização de grandes festivais”, como o Festival de Ópera e Feira do livro (em torno de R$ 10,8 milhões), e o “apoio às manifestações culturais” (R$ 1,7 milhão) e “ações de capacitação cultural” (R$ 235 mil).
O movimento acusa então o governo de uma “ação entre amigos”, com privilégio a determinadas áreas e ênfase em eventos, como diz o artista plástico Armando Sobral:
“O que existe é uma agenda de shows, feiras, festivais e comemorações. Nas artes visuais o único edital que oferecia recursos financeiros para exposições nas salas dos museus do Estado foi extinto assim que ele assumiu a secretaria. Manteve apenas o edital de pauta, mas sem um centavo de apoio.”
Procurado pela reportagem, o governo não se pronunciou. Informou que o Secretário de Cultura Paulo Chaves Fernandes não está autorizado a falar. Seu superior, Alex Fiúza de Mello, secretário especial de Promoção Social, está em licença e “incomunicável”, segundo informação do gabinete.
Antes de ficar "incomunicável", Mello concedeu breve entrevista ao jornal O Diário do Pará, em que, a despeito de ser um reconhecido cientista político e ex-reitor da Universidade federal do Pará, confunde gestão com voluntarismo. E, em uma fala em que cita entre outras coisas a busca de “eficiência” onde ela dificilmente pode ser aferida (a produção artística), defende tese preocupante: a de que a política pública é movida por “razões subjetivas”. E arremata: “Essa matéria nunca terá consenso. Se atendemos um segmento, não atendemos outros. Sempre haverá uma seletividade, porque o estado não pode ser ineficiente”.
A julgar pelas vozes que vêm das ruas seria preciso avaliar se o caráter seletivo e a dose de subjetividade na política cultural do Pará não têm sido excessivos nestes últimos vinte anos. É importante esclarecer também sobre qual medidor o governo tem usado para atestar a qualidade das manifestações culturais. E, ainda, que ganhos efetivos a atual gestão deixa, sobretudo para a maior parte dos artistas e para a população, que, pelo desejo do governo, devem continuar à margem de uma discussão mais aberta e minimamente objetiva sobre as ações públicas para a arte e a cultura no Estado. Antes disso, porém, os artistas prometem continuar fazendo barulho até que sejam ouvidos.
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