sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

ENTREVISTA CAPITAL Ailton Krenak: Próxima missão do capitalismo é se livrar de metade da população do planeta

ENTREVISTA CAPITAL: "A DECADA QUE NÓS ESPERA" 
Ailton Krenak: Próxima missão do capitalismo é se livrar de metade da população do 
planeta. 'A desigualdade deixa fora da proteção social 70% das pessoas. E, no futuro, 
não precisará delas sequer como força de trabalho', reflete. 
Antes da pandemia, Ailton Krenak man­­tinha uma agen­da intensa. Es­critor finalista do 
Prêmio Jabuti com seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, também lançou A Vida 
Não É Útil e O Amanhã Não Está à Venda, todos pela Companhia das Letras. Por conta 
da produção, viajava com frequência pelo Brasil. Desde a chegada do vírus, Krenak 
cumpre, porém, a quarentena na terra indígena de sua etnia, a 200 quilômetros de Belo 
Horizonte. 
“Mantemos as nossas famílias próximas. Podem encontrar-se no quintal, podem comer 
juntos, não precisam usar máscara. Temos um regime orientado por um protocolo
comunitário”, conta. No oásis à margem esquerda do Rio Doce,A em meio ao caos 
sanitário, ele segue alerta para os dramas do mundo, como demonstra na entrevista a seguir.
CartaCapital: Você e os Krenak passam juntos a quarentena. Como tem sido a 
experiencia? 
Ailton Krenak: A pandemia não é um evento local. Posso estar sem contágios na minha 
aldeia, mas há vários casos no entorno. Nos grandes centros urbanos há alguma vigilância. 
Mas nas bordas do Brasil, na periferia, nas beiradas, no Porto de Manaus, no Porto de 
Belém, ninguém controla aquele fluxo. Lá na reserva, observamos preocupados. Não 
adianta nos protegermos se o lado de fora está bagunçado. O recrudescimento da Covid-19 
é um risco grave para nossas vidas. Temos consciência, mas tememos que os vizinhos não 
tenham. Somos uma sociedade do contágio. Por mais que um de nós tome cuidado, sozinho 
não consegue evitá-lo. Mantemos nossas famílias próximas, as irmãs, os cunhados, podem 
encontrar-se no quintal, podem comer juntos, não precisam usar máscara. Temos um 
regime orientado por um protocolo comunitário, tomamos decisões juntos. Lá não há 
decisões individuais. Se alguém põe em risco o coletivo, pode sofrer algum tipo de sanção, 
inclusive posto para fora.
CC: Quais são as consequências e as lições desta pandemia?
AK: A morte deixa um trauma tão mal resolvido que ninguém consegue sair ileso. Há 
perda de identidade, de memória e acomodação em uma condição de sobrevivente. Isso não 
é bom para uma comunidade que precisa administrar suas necessidades materiais. Voltar a 
trabalhar, voltar a cuidar da rotina doméstica. Muitos não conseguirão. E isso é muito ruim. 
Estamos vivendo um tempo no qual ser otimista é falta de educação. É sinônimo de estar 
alheio ao sofrimento dos outros.
CC: Você protagonizou uma das cenas mais memoráveis da Assembleia Constituinte. 
Dói, 33 anos depois, ver tantos ataques à Constituição? 
AK: O trato dos poderes com a Constituição piorou. Mas não é algo que acontece só nos 
últimos tempos. Havia PECs tramitando há anos para mudar o capítulo dos índios, tirar o 
direito dos quilombolas, reduzir políticas públicas. Essa fúria contra a Constituição piorou 
nos últimos dois anos. E deixou de ser tentativa para se tornar fato. É o desaparelhamento 
interno do Estado brasileiro. Das condições necessárias para fiscalizar e proteger os 
territórios indígenas. E um estímulo crescente à violência contra nós, banalizando a ideia de 
proteger o meio ambiente, como se fosse coisa de gente boba. Quem é sabido mesmo passa 
o trator, passa a boiada. Esse ministro do Meio Ambiente é um playboy fazendo fantasias 
tecnológicas do que ele acha que é administrar. É uma ofensa à história da luta 
ambientalista no Brasil o que esse sujeito faz.
CC: Ainda é possível firmar consensos no Brasil? AK: Estamos no Brasil em uma 
situação desgraçada, que mistura pandemia e essa miséria política. Fora do Brasil, ao 
menos, há esperança de abrir outros debates acerca das desigualdades que a pandemia 
agravou, as mudanças climáticas, os refugiados… Essa é uma questão muito importante 
até para entender a pandemia. Essa movimentação de gente, atravessando fronteiras no 
mundo inteiro, pode ser um vetor de novas pandemias que podem arrasar a gente.
CC: O mundo está mais tribal?
AK: O mundo não é uma pessoa. O mundo, idealmente, seria a humanidade, constituída 
por gente igual. Como não somos nada iguais… No livro Ideias para Adiar o Fim do 
Mundo, eu ponho em questão o tópico da humanidade. Pode ser um propósito, uma 
intenção, mas não existe. Antes, havia uma divisão por classes. Os ricos e os pobres, os 
brancos e os pretos, o rural e o urbano. Eram divisões bem primárias. Agora temos 
coletivos, dentro de uma mesma cidade, hostilizando um ao outro. Intolerância religiosa… 
Há uma guerra entre esses mundos que se articula com as outras irritações de diferentes 
setores dessa coisa que somos nós todos, mas que não constitui uma comunidade. 
Somos ajuntamento de povos sem nenhuma afinidade. Se não quisermos desembocar em 
uma guerra civil, precisamos construir consensos, mas os políticos estão todos perdidos, 
feito cegos em tiroteio. 
Ninguém sabe o que está fazendo, nem o governo nem os que estão fora.
CC: Muitos estudosos veem neste momento de crise sinais de queda do capitalismo. 
Você concorda? 
AK: Vivemos uma fase grotesca do capitalismo, mas não acho que estamos em uma crise 
que vai diminuir a potência dele.­ O capitalismo tem produzido uma mudança em si mesmo 
porque não fomos capazes de produzir uma mudança fora. Ele vai destruir o mundo do 
trabalho como conhecemos, e vai dispensar a ideia de população. Essa, para mim, é a 
próxima missão do capitalismo: se livrar de ao menos metade da população do planeta. O 
que a pandemia tem feito é um ensaio sobre a morte. É um programa do necrocapitalismo. 
A desigualdade deixa fora da proteção social 70% da população do planeta. E, no futuro, 
não precisará dela sequer como força de trabalho. Quem promete um mundo de pleno 
emprego é cínico ou doido. Não existe nenhuma possibilidade material de as coisas 
voltarem a funcionar assim
CC: Mas não há nada positivo nisso? Por exemplo, a chegada de grupos 
marginalizados ao poder. Mais gente preo­cupada em repensar a relação com o 
consumo… 
AK: O fato de ter parlamentares indígenas, LGBTs e etc. mostra um endurecimento desse 
processo de transição. Isso não muda as coisas, apenas será integrado ao processo de 
desestruturação programada em que estamos todos metidos. Quanto à renúncia à vida de 
consumismo de quem, como um hamster, só se preocupa em comer e consumir, sem saber 
de onde vem, só uma parcela notou que está errado. Não representa mudança no sistema 
global, no aquecimento do planeta, na erosão da vida. Os cientistas mais ilustres dos anos 
1980 em matéria de mudança climática, quando viram o tempo que nos resta, foram para 
suas fazendas no Texas, no Maine, deram no pé. 
Hoje, vários acreditam em redução de danos, mas é difícil encontrar algum que afirme ser 
possível contornar a degradação.
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se-livrar-de-metade-da-populacao-do-planeta/