POR FERNANDO BRITO
Ninguém duvida do alcance do escritor Paulo Coelho, que já vendeu mais de 200 milhões de livros
mundo afora e segura o título de best-seller nos Estados Unidos com seu O Alquimista.
Pois a manobra de Jair Bolsonaro criando a “onda” de promover manifestações militares pelos 55
Pois a manobra de Jair Bolsonaro criando a “onda” de promover manifestações militares pelos 55
anos do golpe de 1964 arranjou mais essa para os militares brasileiros: um artigo do escritor para o
The Washington Post, contando a sua experiência ao ser preso e torturado pela ditadura brasileira.
Leia abaixo:
Paulo Coelho: fui torturado pela ditadura do Brasil. É isso que
Jair Bolsonaro quer celebrar?
Paulo Coelho, no Washington Post
28 de maio de 1974: um grupo de homens armados invade meu apartamento. Começam a revirar
gavetas e armários – não sei o que estão procurando, sou apenas um compositor de rock. Um deles,
mais gentil, pede que os acompanhe “apenas para esclarecer algumas coisas”. O vizinho vê tudo
aquilo e avisa minha família, que entra em desespero. Todo mundo sabia o que o Brasil vivia
naquele momento, mesmo que nada fosse publicado nos jornais.
Sou levado para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), fichado e fotografado.
Pergunto o que fiz, ele diz que ali quem pergunta são eles. Um tenente me faz umas perguntas tolas,
e me deixa ir embora. Oficialmente já não sou mais preso: o governo não é mais responsável por
mim. Quando saio, o homem que me levara ao DOPS sugere que tomemos um café juntos. Em
seguida, escolhe um táxi e abre gentilmente a porta. Entro e peço para que vá até a casa de meus
pais – espero que não saibam o que aconteceu.
No caminho, o táxi é fechado por dois carros; de dentro de um deles sai um homem com uma arma
na mão e me puxa para fora. Caio no chão, sinto o cano da arma na minha nuca. Olho um hotel
diante de mim e penso: “não posso morrer tão cedo.” Entro em uma espécie de catatonia: não sinto
medo, não sinto nada. Conheço as histórias de outros amigos que desapareceram; sou um
desaparecido, e minha última visão será a de um hotel. Ele me levanta, me coloca no chão do seu
carro, e pede que eu coloque um capuz.
O carro roda por talvez meia hora. Devem estar escolhendo um lugar para me executarem – mas
continuo sem sentir nada, estou conformado com meu destino. O carro para. Sou retirado e
espancado enquanto ando por aquilo que parece ser um corredor. Grito, mas sei que ninguém está
ouvindo, porque eles também estão gritando. Terrorista, dizem. Merece morrer. Está lutando contra
seu país. Vai morrer devagar, mas antes vai sofrer muito. Paradoxalmente, meu instinto de
sobrevivência começa a retornar aos poucos.
Sou levado para a sala de torturas, com uma soleira. Tropeço na soleira porque não consigo ver
nada: peço que não me empurrem, mas recebo um soco pelas costas e caio. Mandam que tire a
roupa. Começa o interrogatório com perguntas que não sei responder. Pedem para que delate gente
de quem nunca ouvi falar. Dizem que não quero cooperar, jogam água no chão e colocam algo no
meus genitais.
Entendo que, além das pancadas que não sei de onde vêm (e portanto não posso nem sequer
contrair o corpo para amortecer o impacto), vou começar a levar choques. Eu digo que não
precisam fazer isso, confesso o que quiser, assino onde mandarem. Mas eles não se contentam.
Então, desesperado, começo a arranhar minha pele, tirar pedaços de mim mesmo. Os torturadores
devem ter se assustado quando me veem coberto de sangue; pouco depois me deixam em paz. Dizem
que posso tirar o capuz quando escutar a porta bater. Tiro o capuz e vejo que estou em uma sala a
prova de som, com marcas de tiros nas paredes. Por isso a soleira.
No dia seguinte, outra sessão de tortura, com as mesmas perguntas. Repito que assino o que
desejarem, confesso o que quiserem, apenas me digam o que devo confessar. Eles ignoram meus
pedidos. Depois de não sei quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em
horas), batem na porta e pedem para que coloque o capuz.
desejarem, confesso o que quiserem, apenas me digam o que devo confessar. Eles ignoram meus
pedidos. Depois de não sei quanto tempo e quantas sessões (o tempo no inferno não se conta em
horas), batem na porta e pedem para que coloque o capuz.
O sujeito me pega pelo braço e diz, constrangido: não é minha culpa. Sou levado para uma sala
pequena, toda pintada de negro, com um ar-condicionado fortíssimo. Apagam a luz. Só escuridão,
frio, e uma sirene que toca sem parar. Começo a enlouquecer, a ter visões de cavalos. Bato na porta
da “geladeira” (descobri mais tarde que esse era o nome), mas ninguém abre. Desmaio. Acordo e
desmaio várias vezes, e em uma delas penso: melhor apanhar do que ficar aqui dentro.
Quando acordo estou de novo na sala. Luz sempre acesa, sem poder contar dias e noites. Fico ali o
que parece uma eternidade. Anos depois, minha irmã me conta que meus pais não dormiam mais;
minha mãe chorava o tempo todo, meu pai se trancou em um mutismo e não falava.
Já não sou mais interrogado. Prisão solitária. Um belo dia, alguém joga minhas roupas no chão e
pede que eu me vista. Me visto e coloco o capuz. Sou levado até um carro e posto na mala. Giram
por um tempo que parece infinito, até que param – vou morrer agora? Mandam-me tirar o capuz e
sair da mala. Estou em uma praça com crianças, não sei em que parte do Rio.
Vou para a casa de meus pais. Minha mãe envelheceu, meu pai diz que não devo mais sair na rua.
Procuro os amigos, procuro o cantor, e ninguém responde ao meus telefonemas. Estou só: se fui
preso devo ter alguma culpa, devem pensar. É arriscado ser visto ao lado de um preso. Saí da prisão
mas ela me acompanha. A redenção vem quando duas pessoas que sequer eram próximas de mim me
oferecem emprego. Meus pais nunca se recuperaram.
Decadas depois, os arquivos da ditadura são abertos e meu biógrafo consegue todo o material.
Pergunto por que fui preso: uma denúncia, ele diz. Quer saber quem o denunciou? Não quero.
Não vai mudar o passado.
E são essas décadas de chumbo que o Presidente Jair Bolsonaro – depois de mencionar no
Congresso um dos piores torturadores como seu ídolo – quer festejar nesse dia 31 de março.