terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O chileno que sepultou Victor Jara clandestinamente


O ministro da Corte de Apelações de Santiago, Miguel Vázquez, solicitou, na segunda-feira passada (21), à Suprema Corte a extradição dos Estados Unidos de Pedro Barrientos, processado como autor do homicídio de Víctor Jara, ocorrido no dia 16 de setembro de 1973 no Estádio Nacional do Chile, somente cinco dias depois do golpe militar encabeçado por Augusto Pinochet.

Barrientos foi processado no dia 28 de dezembro passado, junto com outras sete pessoas, pela responsabilidade no homicídio do popular artista e dramaturgo.
Após o bombardeio ao Palácio La Moneda e a morte de Salvador Allende, cerca de 500 professores e estudantes se entrincheiraram na Universidade Técnica do Estado (hoje Usach). Entre eles estava Jara, que ali lecionava.
Não resistiram muito. Houve mortes e os presos foram levados ao Estádio do Chile. Jara esteve preso quatro dias, tempo no qual foi duramente torturado. Sofreu inclusive a fratura de suas mãos com pancadas. “Toca o violão agora”, lhe teriam dito os algozes. O corpo de Jara foi encontrado alguns dias depois fora do Cemitério Metropolitano por Carabineiros que o levaram como N.N. ao Serviço Médico Legal.
Nesse lugar começa a história de Héctor Herrera. O ex-funcionário do Registro Civil está hoje com 62 anos e mora na França. De visita ao Chile, conversou com o Página/12 e contou detalhes de como, entre centenas de mortos, encontrou Jara, avisou sua esposa Joan Turner, a esposa inglesa do cantor, tiraram-no, arriscando suas vidas, do Serviço Médico Legal – SML [correspondente ao nosso Instituto Médico Legal – IML] e o enterraram em uma cova anônima no Cemitério Metropolitano.
Pagina/12: O que você estava fazendo no dia 11 de setembro de 1973?
Héctor Herrera: Tinha 23 anos e trabalhava como administrativo, fazendo as carteiras de identidade no Registro Civil. Retomei meu trabalho no dia 15 de setembro, antes não pude devido ao toque de recolher. Nesse dia, um militar gritou de cima de um caminhão: “Acabou a política, agora se trabalha”. Pediu voluntários para o Serviço Médico Legal, me levaram e acabaram com a minha vida. 
Nos deram instruções: tomar a altura, peso, sexo, cor da pele e olhos dos mortos que chegavam aos montes. Além disso, tirávamos as digitais dos 10 dedos. 
Trabalhamos no estacionamento do SML ao ar livre. Chegavam caminhões e jogavam os corpos no chão. Nós os colocávamos um ao lado do outro. Estavam com feridas de todo tipo e havia muito sangue. Havia várias mulheres mortas, inclusive uma delas estava com seu bebê. 
Eles tinham os olhos abertos e estavam amarrados com arame. Todos tinham os punhos fechados. Custava a abrir-lhes as mãos. Uma vez fichados, os corpos eram entregues ao departamento de datiloscopia para serem identificados. Daí em diante não sabíamos para onde iam.
Como reconheceu Víctor Jara?
Eu o vi em 1972 em um festival de teatro no centro de Santiago. Um amigo chilote que trabalhava no SML me avisou que estava entre os mortos. Era de dia, mas o pátio estava em penumbras. Custei a reconhecê-lo. Estava cheio de terra e com muitas feridas. 
O cabelo estava sujo de sangue e terra, e o rosto estava desfigurado pelos golpes. Não estava certo. Anotei seus dados, mas decidi guardar a ficha. Não a entreguei. Conto isso a uma amiga na datiloscopia. Ela sabia que eu era próximo da Unidade Popular e allendista. 
Na hora do café, lhe passei o cartão de Víctor por baixo da mesa. Disse-lhe: “Não se deve avisar os milicos, mas sua família, para tirá-lo daí”. 
A moça me confirmou que era Víctor. Procurei mais informações sobre ele e descobri que era casado com Joan e que o endereço de ambos batia. Quis ir à sua casa, mas o toque de recolher me impediu. Contei à minha família e no dia seguinte, 19 de setembro, parto, na primeira hora, rumo à casa dos Jara. Tomei vários ônibus, era longe. Numa das janelas aparece Joan preocupada, e me apresento. 
Ela me faz entrar. No living estavam suas filhas. Uma delas cortava fotos de seu pai: “Você o conhece”, me perguntou. Joan pensava que eu estava trazendo uma mensagem de Víctor. Contei-lhe a verdade, tomou-me pelas mãos e chorou. Isso me fez reagir e decidi ajudá-la, a sepultá-lo antes que os milicos tomassem conhecimento de quem era.
Você arriscou sua vida?
Sim. Saímos de sua casa em uma caminhonete, levava em suas mãos um poncho andino. Chegamos ao SML. Havia militares na entrada. Me fizeram passar e disse que Joan era funcionária. Ela se sobressaltou com o espetáculo de mortos.
O corpo de Víctor não estava onde o deixei. Pergunto a outro funcionário, subimos uma escada cheia de cadáveres no chão. Cerca de 30 corpos mais adiante estava Víctor vestido com a mesma roupa: jeans, camisa azul e uma jaqueta de má qualidade que alguém lhe emprestou, porque era pequena. Joan o vê. Chorou em silêncio, não gritou. O abraçou e o protegeu. Tratou de limpá-lo um pouco.
Eu estava observando: caso nos pegassem, não sei o que teria acontecido. Rapidamente faço os trâmites legais. Depois de vários minutos me dão o certificado para retirar o corpo, mas não tinha dinheiro para comprar o ataúde. Joan recorda-se de um amigo que mora perto dali, e o localizamos. 
Compramos o ataúde. Tudo na mais absoluta discrição. Agora precisávamos de um carrinho de mão para levar o ataúde para dentro do cemitério, que ficava perto dali. Conto a outra funcionária do local que queremos enterrar Víctor, a senhora me faz um sinal como de um violão. “Sim”, lhe respondo. “Não diga nada a ninguém, mas às 14h30 três sepultureiros o esperarão na entrada e o ajudarão com o carrinho”, me disse. Ela me dá um papel especial. Tudo pronto.
Voltamos ao SML para pegar o corpo, mas outra vez não estava. O localizamos. Estava nu, pronto para a autópsia. Conseguimos tirá-lo dali e o colocamos assim como estava no ataúde. 
Não havia tempo. O cobrimos com o poncho andino, colocamos sua roupa dobrada e o envolvemos. Em uma sala contígua o velamos com quatro horríveis lâmpadas que mal iluminavam. Joan ficou sozinha por alguns minutos. Carregamos o ataúde na caminhonete e saímos. 
Exatamente nesta hora aparece um caminhão militar com mais mortos. Não queriam retroceder e aí Joan faz sua primeira ação mais brusca, com as mãos lhes disse que voltassem porque tínhamos prioridade, e os milicos retrocederam. Saímos. 
Chegamos ao cemitério. Íamos Joan, Héctor, eu e o sepultureiro que empurrava o carro. Não levávamos flores. Caminhamos até o fundo do cemitério.
Chegamos ao humilde lugar que pudemos comprar. O lugar de Víctor ficava acima de uma fileira de seis nichos. Entre quatro erguemos o ataúde. Foi difícil, pois estava muito pesado. Nesse momento, o sepultureiro pega uma coroa fresca de outro enterro e a coloca no lugar de Víctor. Foi então que não aguentei mais e caí no choro. Joan me abraça e me diz: “Este não é o momento para nos lembrarmos de Víctor, deves lembrá-lo cantando ao Chile”. Nos retiramos em silêncio. 
No mesmo momento estavam enterrando um militar de patente. Tinha muitas flores, havia muita gente. Disse: “Por Deus, dois mortos, um de cada lado, para quê, por quê?”. Me deixaram em casa, aí no bairro Conchalí. Não vi Joan por anos seguidos. Eu, depois de estar várias vezes preso por meu passado na UP, fui exilado na França. Os milicos me acusavam de falsificar identidades para que mais gente votasse em Allende. Eu jamais falsifiquei nada. Nunca.
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