terça-feira, 23 de outubro de 2007

IMBROLHO INCRA: ENTREVISTA AO PROCURADOR FELIPE BRAGA

O procurador da República Felipe Fritz Braga, lotado em Santarém, pescou o fio da meada de um escândalo que alcançou repercussão nacional, inclusive no “Fantástico”, da TV Globo: flagrou assentamentos “fantasmas” no oeste do Pará, montados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - verdadeiros assentamentos de papel feitos apenas para servir a algumas madeireiras. O esquema está sendo desmontado ponto a ponto. Na semana passada, a Justiça Federal afastou o superintendente regional do Incra em Santarém, Pedro Aquino, e mais quatro servidores (veja na matéria abaixo)).

Quais problemas o Ministério Público Federal detectou nos “assentamentos de papel” do Incra no oeste do Pará?
- No primeiro semestre deste ano, o Incra chamou as principais lideranças dos movimentos populares rurais do oeste do Pará para apresentar o projeto de lei do orçamento de 2008. Estive lá. Para a surpresa de todos, o superintendente de Santarém (Pedro Aquino) apresentava um frustrante prognóstico para a infra-estrutura dos assentamentos: embora na avaliação dos movimentos sociais bem como da própria equipe da Superintendência fossem necessários R$ 300 milhões para o próximo ano, a lei orçamentária fixava o valor de R$ 19 milhões. A situação era constrangedora para o próprio superintendente. Mas não houve protestos, mobilizações, nada - no máximo, manifestações de solidariedade. Ou ninguém percebeu o que aquilo significava ou ninguém mais se importa com reforma agrária. O que é um assentamento sem projetos de infra-estrutura? É uma mera portaria, é um assentamento de papel.

Os projetos de assentamento sequer receberam infra-estrutura para atender os trabalhadores rurais?
- Em dois anos, foram criadas quase duas centenas de assentamentos, mas a infra-estrutura mínima todo o tempo esteve fora dos planos do governo federal. O que é um assentamento sem a construção pelo menos de estradas de acesso? Fomos então trabalhar sobre os processos de criação dos assentamentos, e a situação com que nos deparamos foi desoladora - e funesta: os assentamentos foram em geral criados sem pareceres técnicos mínimos que permitissem avaliar sua viabilidade social e ambiental. Por fim, nos deparamos com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente assinando um acordo com o Incra, pelo qual seria possível a aprovação de projetos de exploração madeireira nos assentamentos mesmo sem o licenciamento ambiental. O quadro ficou então nítido: os assentamentos foram criados sem que houvesse qualquer preocupação do Incra com comunidades assentadas, para que efetivamente pudessem ocupar e viver dignamente nas áreas, mas trabalhava-se para que o setor madeireiro pudesse explorar a floresta. Vimos então que, na verdade, os assentamentos não eram só papel: eram assentamentos de madeira.

Quais providências o senhor tomou, então?
- Pedimos a urgente suspensão dos assentamentos e do acordo com a Secretaria de Meio Ambiente, o que foi prontamente atendido pela Justiça Federal, até que o Incra regularize tudo. Em reunião posterior com o diretor nacional do Incra, Raimundo Lima, este fez uma colocação reveladora: a política de criação de assentamentos do Incra se inseria numa política mais ampla de aumento da participação brasileira no mercado internacional de madeira tropical de 2% para 10%. Só que isso, como vimos, às custas das populações da zona rural, de seus modos de vida, de sua cultura, de sua tradição.

É possível solucionar as falhas desses assentamentos?
- Sem dúvida. Estamos trabalhando para isso, apesar das dificuldades. O Incra apresentou ao MPF um plano de ação que contempla uma força-tarefa dedicada a trabalhos de campo e escritório, no intuito de sanear os processos de criação dos assentamentos, cancelar o que tiver de ser cancelado, e trabalhar para que se obtenha o licenciamento ambiental. A proposta, entretanto, está superdimensionada para as reais capacidades da autarquia. Exigimos então que o Incra dividisse esse trabalho em três etapas, finalizando primeiramente o trabalho naquelas áreas onde a presença de comunidades locais fosse mais evidente, deixando os assentamentos voltados para a produção madeireira para as etapas finais.

Como definir as prioridades?
- Esse escalonamento de prioridades seria decidido numa reunião com os agrônomos da superintendência que estiveram em campo nos primeiros levantamentos - e isso é muito importante, pois eles é que estiveram nas áreas e sabem de fato o que acontece lá. Não adianta alguém de gabinete definir diretrizes. É o agrônomo que conversou com as comunidades, que investigou a relação com os fazendeiros, ele é que sabe a real urgência da criação do assentamento. Inicialmente, marcamos a reunião para o dia 11 de outubro, mas o Incra já desmarcou duas vezes. Acabou ocorrendo no dia 18, e ainda assim só após o afastamento do superintendente Pedro Aquino e de outros servidores. Não sei ainda qual a importância de fato que o Incra dá para esse trabalho de saneamento. É preciso mostrar seriedade. Enfim, está nas mãos do Incra solucionar este problema de forma rápida e eficiente. Da parte do MPF, tudo vem sendo feito neste sentido.

É possível saber o valor investido para a criação desses assentamentos?
- O valor foi alto, em diárias, combustível, manutenção de veículos, além de recursos cedidos por outros órgãos públicos. O objetivo era gerar, em prazos exíguos, altos números nas relações de beneficiários da reforma agrária, que é comumente conhecido pelo jargão “metas”. O governo gederal tem um compromisso de assentar um certo número de famílias a cada ano. Isso integra o II Plano Nacional de Reforma Agrária e é exigido pelos movimentos sociais Brasil afora. As metas não estavam sendo alcançadas em outros estados, e a Superintendência de Santarém se dispôs então a cumprir esse papel - afinal, aqui as terras são da União, não há necessidade de desapropriação, e o assentamento é fácil de criar na metodologia ilícita que vinha sendo praticada. Apuramos que a cada retorno do superintendente das reuniões periódicas com os superintendentes de outros Estados, a meta aumentava.

Como assim?
- Inicialmente subiu de 21,5 mil para 28 mil, depois para 30,5 mil, até chegar a 36 mil famílias, duas semanas antes do final de 2006. Isso gerou uma inserção frenética de dados no sistema de informações da autarquia - um punhado de servidores trabalhando até tarde da noite, sem horário de almoço, sem fim de semana - repleta de erros, sem seguir trâmites mínimos de verificação. As conseqüências foram desastrosas. Cada um desses beneficiários tem direito a R$ 9.800 de créditos-instalação, os quais em muitos casos já vêm sendo pagos. Há pessoas que receberam os créditos mais de uma vez e, como não há equipes de acompanhamento da aplicação dos créditos, recursos públicos estão em muitos casos beneficiando fantasmas. Evidentemente, o MPF está trabalhando para punir os responsáveis. A pergunta que fica no ar: quem está se beneficiando de fato com esse número exorbitante de assentamentos criados? A população rural é que não é.

Fonte : O Liberal

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