Plantio de soja nos limites da aldeia indígena Açaizal, no Pará
DW Brasil
A fronteira agrícola brasileira já alcança o rio Amazonas em Santarém. Cidade paraense está se
A fronteira agrícola brasileira já alcança o rio Amazonas em Santarém. Cidade paraense está se
tornando ponto de confluência do comércio de soja e ameaça demarcação de áreas indígenas como a
da etnia munduruku.
Os campos de soja começam atrás do pequeno pomar de Paulo Bezerra. Ele não conversa mais com
seu vizinho, o fazendeiro que planta ali o produto de exportação número um do Brasil e que vive do
outro lado da estrada de terra empoeirada. Da última vez, o vizinho os xingou de vagabundos, a ele e
a seus parentes da etnia indígena munduruku, conta Paulo, levantando uma cobra coral morta do
chão. O réptil pode ter sido vítima tanto das queimadas no campo quanto dos agrotóxicos.
As plantações de soja se estendem até uma distância de dez centímetros das casas dos munduruku na
As plantações de soja se estendem até uma distância de dez centímetros das casas dos munduruku na
aldeia Açaizal. "Quando começa a chover, eles começam a aplicar o veneno. É para matar o mato, e
toda semana aplicam o veneno na soja para matar os insetos", explica Paulo, de 56 anos. O resultado:
ânsia de vômito, coceira na pele, falta de ar e tonturas. "Cada dia estamos morrendo aos poucos
dentro da nossa aldeia. Mas nosso governo está aí, discriminando indígenas, quilombolas e
ribeirinhos, que sobrevivem desta terra", enumera.
Segundo ele, as autoridades não reagem às queixas dos munduruku. "Aqui o governo só está
Segundo ele, as autoridades não reagem às queixas dos munduruku. "Aqui o governo só está
beneficiando uma família de 'sojeiros', e mais de 60 famílias nessa aldeia não. Estamos sendo
maltratados, castigados pelo uso de agrotóxicos", afirma.
Os venenos já foram parar nos rios e nos lençóis freáticos, e as plantações dos próprios indígenas
Os venenos já foram parar nos rios e nos lençóis freáticos, e as plantações dos próprios indígenas
estão sendo prejudicadas, relata também o cacique da aldeia, Josenildo Munduruku. "Nossos
parentes a cada dia estão adoecendo mais, os nossos animais e os animais da floresta desaparecendo
devido ao uso de produtos agrícolas. Eles podem nos matar envenenados", teme.
Açaizal fica próxima ao Lago do Maicá, na confluência do rio Tapajós com o Amazonas, e faz parte
do território indígena Munduruku do Planalto Santareno. Há anos, os munduruku lutam pelo
reconhecimento oficial da área, com base no Artigo 231 da Constituição de 1988, que garante aos
povos indígenas o direito aos seus territórios tradicionais. Dentro de cinco anos – ou seja, até 1993 –
essas áreas deveriam ter sido demarcadas e transferidas para os indígenas. Mas centenas de casos
ainda esperam conclusão – incluindo o território dos munduruku nas proximidades de Santarém.
Antes uma cidade adormecida da selva paraense, Santarém se tornou visivelmente o ponto de
Antes uma cidade adormecida da selva paraense, Santarém se tornou visivelmente o ponto de
confluência do comércio brasileiro de soja com a construção da BR-163, que liga a cidade a Cuiabá
desde os anos 1970. Não longe da aldeia munduruku, os caminhões de grãos estrondeiam em direção
ao porto de carregamento da multinacional alimentícia Cargill. Daqui, a carga preciosa é
transportada de navio em direção ao Atlântico.
Atualmente, há mais quatro estações de carregamento em construção. Os ribeirinhos do Lago do
Maicá já temem pelo seu futuro como pescadores. De maneira definitiva, a fronteira do agronegócio
chegou à margem sul do Amazonas.
Durante mais de quarenta anos, a agricultura avançou em direção ao norte, ao longo das estradas
Durante mais de quarenta anos, a agricultura avançou em direção ao norte, ao longo das estradas
construídas em meio à floresta. No leste, foi a rota de Brasília a Belém. No oeste, o trajeto que leva
de Cuiabá a Porto Velho. E, no centro, a BR-163. Cerca de 20% da Amazônia já teriam sido
destruídos para dar lugar à criação de gado e ao plantio de soja.
Parques naturais e territórios indígenas ainda permanecem intactos. Resistem ao chamado "Arco do
Parques naturais e territórios indígenas ainda permanecem intactos. Resistem ao chamado "Arco do
desmatamento". Mas o novo governo de Jair Bolsonaro já anunciou que, em breve, também quer
abrir as áreas protegidas para a exploração econômica. Não se sabe por quanto tempo o rio
Amazonas servirá de trava para impedir o salto da agricultura para o norte do país, no coração da
Floresta Amazônica.
"Áreas florestadas estão reduzindo", diz o cacique Josenildo Munduruku
A pressão sobre a etnia munduruku já está forte. "A cada dia a gente percebe que as áreas florestadas
estão reduzindo, a gente acaba a todo momento sendo atacado", constata o cacique Josenildo. "Por
um esquema muito orquestrado de grilagem, os 'sojeiros' hoje ocupam esse território, eles acabam se
apossando por imensas fraudes no sistema de regularização fundiária", acrescenta.
Para conter essa evolução, os munduruku apelaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Para conter essa evolução, os munduruku apelaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da Organização dos Estados Americanos (OEA) no final de 2018. Quando o órgão enviou uma
delegação a Açaizal, fazendeiros de soja da região obstruíram o caminho com dezenas de caminhões.
Naquele momento, os agricultores de soja sentiam que passavam por uma ascensão, descreve
Naquele momento, os agricultores de soja sentiam que passavam por uma ascensão, descreve
Jucelino Farias, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém. "Logo depois da eleição desse
atual governo, eles já se sentiam muito à vontade para continuar nesse processo do avanço do
agronegócio, na nova abertura de áreas para plantações", diz. "Nas comunidades mesmo, o avanço
do desmatamento e o avanço da monocultura continuam. E muitos desses desmatamentos para a soja
são provenientes da grilagem da terras", expõe.A posse ilegal de terras, ou grilagem, ficou mais
sofisticada nos últimos anos, descreve Jucelino. Segundo ele, primeiro os fazendeiros identificam as
áreas que ainda não têm registro de posse – a exemplo das terras da União reivindicadas pelos
indígenas. Os dados de GPS são então, explica, inseridos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é
autodeclaratório (nos moldes do imposto de renda) e obrigatório para todas as propriedades rurais
brasileiras para fins de regularização ambiental.
"O CAR não gera título, mas eles o usam para expulsar as pessoas", explica Farias. O passo seguinte,
diz, é conseguir um título de posse "comprando registro em cartório". Como a Justiça costuma reagir
lentamente na maioria das vezes, muitos conseguem concluir o processo, prejudicando as
comunidades indígenas. "Eles não têm nenhuma garantia de permanecer no seu território", lamenta
Farias.
Botes próximos à aldeia munduruku de Açaizal, com estação da Cargill ao fundo
A região seria então uma terra sem lei? "Há, sim, lei. Mas o que há em demasia é o desrespeito à lei",
coloca Luis de Camões Lima Boaventura, procurador do Ministério Público Federal em Santarém.
"Há, aqui na região amazônica, uma ausência proposital do Estado, justamente numa área onde a
expansão agrária ou os recursos minerais estão. E faz-se um esforço equivocadíssimo de negar a
preexistência milenar de povos que ocupam essa região. E esses povos fazem um contraponto a esses
interesses", destaca.
Os munduruku em Açaizal e nas aldeias vizinhas já tomaram o destino nas próprias mãos, medindo
Os munduruku em Açaizal e nas aldeias vizinhas já tomaram o destino nas próprias mãos, medindo
os seus territórios e registrando pedido de demarcação do território indígena Munduruku do Planalto
Santareno junto à Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas o órgão foi esvaziado após a posse de
Bolsonaro, que tirou dele a responsabilidade de delimitação de terras indígenas e a transferiu para o
ministério da Agricultura.
Com isso, abriram-se as portas para a destruição desses territórios, diz Camões. "Muita coisa que
Com isso, abriram-se as portas para a destruição desses territórios, diz Camões. "Muita coisa que
existe nesse país é inexplicável. Principalmente nesse momento, onde o próprio estado brasileiro
fomenta este tipo de prática, fomenta a depredação dos recursos naturais que são indispensáveis para
a manutenção do ecossistema e da vida de milhares e milhares de pessoas", critica.
Camões Boaventura já trabalha na região de Santarém há alguns anos. Mas o fracasso do Estado de
Camões Boaventura já trabalha na região de Santarém há alguns anos. Mas o fracasso do Estado de
Direito ainda o choca. "Não há explicação plausível pra justificar a naturalização de uma aberração,
que é o que ocorre aqui: a ausência proposital do Estado, a supressão e a aniquilação de possibilidade
de vida digna para essas pessoas. Não tem explicação", indigna-se.
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