terça-feira, 6 de novembro de 2018

'COMO EXPLICAR O VOTO DE MILHÕES DE BRASILEIROS A UM SER REPULSIVO?', INDAGA BERNARDO KUCINSKI


Ao receber o prêmio Vladimir Herzog, o escritor Bernardo Kucinski indagou em tom de 
denúncia: "como explicar o voto de milhões de brasileiros a um ser repulsivo? Como explicar 
um fenômeno de dissonância cognitiva de tal magnitude? Suas causas são certamente muitas e 
complexas. Mas não é um processo que nasceu ontem. Vem sendo cevado ao longo de décadas, 
desde que um operário, um simples operário, liderou as grandes greves que levaram à queda 
da ditadura e posteriormente se tornou presidente do Brasil".
Do Brasil de Fato
Alocução na outorga do prêmio Jornalístico Vladmir Herzog de Direitos Humanos e Anistia, 25 de 
Outubro de 2018, Tucarena, SP (antes, portanto do segundo turno da eleição)
Boa noite a todos e a todas. Entendo a escolha do meu nome para o prêmio Vladmir Herzog deste 
ano como um posicionamento coletivo de repúdio aos que pregam a violação dos direitos humanos, 
mais do que homenagem a um indivíduo. E agradeço por ter sido escolhido o instrumento desse 
gesto. Sinto-me honrado.
Quarenta e oito anos atrás, em 1970, tempos de ditadura militar, eu e minha mulher partíamos para 
Londres para o que se chamava então de exílio voluntário. Levava no bolso uma cartinha de 
recomendação do Vlado para o chefe do serviço brasileiro da BBC, onde Vlado havia trabalhado. 
Levávamos na bagagem os originais de um livro escrito por mim e pelo jornalista Italo Troca, 
denunciando as torturas no Brasil - encomenda do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que o publicou 
na França com o título Pau de Arara, a violência militar no Brasil.
Pouco depois, em julho do ano seguinte, Luiz Eduardo Merlino foi preso ao retornar ao Brasil e 
torturado no pau de arara, no Doi-Codi de São Paulo, comandado pelo coronel Carlos Alberto 
Brilhante Ustra. Merlino sofreu ruptura da veia femural e foi deixado à morte. Tinha apenas 23 anos. 
Era um dos mais brilhantes jornalistas da nossa geração.
Passaram-se quatro anos. No dia 25 de outubro de 1975 parti outra vez para Londres, para um breve 
estágio numa redação. Ao desembarcar, recebi a notícia de que Vlado tinha sido assassinado no 
mesmo DOI-CODI de São Paulo em que mataram Merlino. Ao visitar amigos na BBC soube que 
agentes da embaixada tentavam extrair declarações de que Vlado era mentalmente instável. Vlado 
tinha apenas 38 anos. Também foi um dos mais brilhantes jornalistas de nossa geração.
Em 2008, passados quase 40 anos da morte de Merlino, Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado 
em ação declaratória por sequestro e tortura, movida pela família de Merlino. Entretanto, oito dias 
atrás, já como reflexo dos novos tempos, o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a sentença 
condenatória da primeira instância. E dentro de três dias, num dos episódios mais extravagantes de 
histeria coletiva de nossa história, poderá se eleger presidente do Brasil uma pessoa que além de 
desqualificada, em todos os sentidos da palavra, tem como ídolo esse mesmo o coronel Brilhante 
Ustra, responsável pelo assassinato de Merlino e co- responsável com seus colegas de repressão pela 
morte de Vlado e outras 433 pessoas entre as quais 210 desaparecidos políticos.
Cito artigo de Monica de Bolle da revista Época do dia 21 do mês passado:

Abro aspas: Em 2015 Bolsonaro disse em vídeo que Pinochet fez o que tinha que ser feito...Em 1999 
durante entrevista à TV Bandeirantes, Bolsonaro deu a seguinte declaração: Você só vai mudar, 
infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o 
regime militar não fez. Matando 30 mil, e começando por FHC. Em 2016 disse o candidato e uma 
entrevistadora O erro da ditadura foi torturar e não matar. Fecho aspas.
Cito agora, o que essa mente, essa sim doentia, disse em vídeo tornado público no último domingo: 
"A faxina agora será muito grande. Essa turma se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de 
todos nós. Ou vão para fora ou para a cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa 
pátria... Se Lula estava esperando o Haddad ganhar e assinar o decreto de indulto vou dizer uma 
coisa: você, vai apodrecer na cadeia. Em breve você terá a companhia de Lindbergh Faria para jogar 
dominó. Aguarde que o Haddad também chegará ai e não será para visitá-lo não.
Como explicar o voto de milhões e brasileiros a um ser repulsivo? Como explicar um fenômeno de 
dissonância cognitiva de tal magnitude? Suas causas são certamente muitas e complexas. Mas não é 
um processo que nasceu ontem. Vem sendo cevado ao longo de décadas, desde que um operário, um 
simples operário, liderou as grandes greves que levaram à queda da ditadura e posteriormente se 
tornou presidente do Brasil. Atingiu seu e ápice quando Judiciário e imprensa fizeram do combate à 
corrupção uma guerra sectária. Citei de propósito artigo da revista Época porque o vi com uma das 
poucas exceções na postura da mídia, essas décadas todas.
Não me cabe julgar o outro. Não me cabe avaliar as razões de cada um. Falo de mim, do que eu 
sinto. O que mais me entristece e me envergonha neste momento, não é a postura dos donos do poder 
econômico, já esperada, nem a de uma classe média frustrada e enraivecida, nem mesmo a do povo 
pobre, açulado pelo discurso fácil do linchamento. O que me acabrunha é a postura dos que deviam 
saber melhor, entre os quais, obviamente, nós, os jornalistas.
Compartilho este prêmio Herzog com os jornalistas que exerceram e exercem a função mais nobre 
de nosso ofício, que é a de defender a liberdade, a vida e os direitos fundamentais do ser humano, 
entre os quais o direito à moradia, à alimentação, à educação e à saúde; e compartilho-o também com 
o ex-presidente Lula, que à extensão desses direitos devotou sua carreira política, hoje, mais do que 
nunca, vítima do ódio coletivo e do linchamento. Obrigado

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