Economista explica as origens da crise venezuelana e como o novo plano econômico pode agir
para combatê-la. País enfrenta dificuldade até para pagar medicamentos porque sistema
financeiro impede que intermediários financeiros (bancos) recebam e repassem pagamentos.
Fania Rodrigues
Brasil de Fato | Caracas, Venezuela, 22 de Agosto de 2018 às 16:58
A Venezuela passa por uma semana decisiva. Começou a ser aplicado, na última segunda-feira (20), o plano de recuperação econômica, que inclui diversas medidas como aumento de salário, taxação de grandes fortunas e do setor bancário, internacionalização do preço do combustível e uma reconversão monetária, com o corte de cinco zeros da moeda venezuelana, o bolívar.
Para entender as causas estruturais da crise, a manipulação cambial e os efeitos do bloqueio internacional sobre a economia venezuelana, o Brasil de Fato entrevistou o economista Alfredo Serrano Mancilla. Ele é doutor em economia e diretor do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag). Espanhol de nascimento e latino-americano por opção, Serrano é autor do livro “El pensamiento económico de Hugo Chávez”, de 2014. Sua publicação despertou o respeito e o interesse dos chavistas, mas também o ódio da direita.
Brasil de Fato: Como explicar para fora da Venezuela a atual crise econômica do país? Se bem é certo que não há uma situação pobreza extrema, por outro lado não podemos negar que há uma crise latente.
Alfredo Serrano: Todo modelo econômico passa por etapas, fases e transformações. Assim também acontece com o modelo venezuelano, que depende de fatores internos e externos. Além disso, existem questões conjunturais e estruturais - como a forte dependência do setor petroleiro. Cerca de 95% das exportações desse país dependem do petróleo, inclusive em algum momento já roçou os 99%. Portanto, a relação com o preço internacional do petróleo é fundamental para entender a crise. Em 2014, o preço médio anual do barril de petróleo era de 88 dólares. Em 2016, esse valor médio passou a 33 dólares. Significa que uma economia que tem forte dependência do petróleo, terá menos ingresso de recursos em dólares. Se soma a isso o pagamento da dívida externa que, entre 2014 e 2016, girou em torno de 70 bilhões de dólares, o que é chamado pelos economistas "de forte restrição externa".
Também há a questão do desequilíbrio da balança comercial, pois a Venezuela importa mais de 80% do que consome no país.
Essa é outra questão que temos que levar em conta. A Venezuela depende fortemente de importações para abastecer o país e responder a uma demanda interna crescente, pois o chavismo vem desenvolvendo políticas distribuição de renda, como as Misiones (programas de distribuição de renda). Além disso, a taxa de desemprego da Venezuela ao longo dos últimos anos tem sido muito baixa e continua sendo: hoje ela está abaixo dos 7%. Aqui nos encontramos em uma situação que é um verdadeiro dilema econômico: Como lidar com a queda do preço do petróleo, o aumento do nível das importações para satisfazer o consumo interno e seguir pagando a dívida externa?
Como está o setor produtivo do país?
O país possui uma capacidade produtiva instalada alta, no entanto não tem um nível alto de produção. Para produzir é necessário investimento em maquinaria e ter uma grande capacidade produtiva instalada, o que já foi feito. A seguinte etapa é produzir e isso também requer investimento. E a terceira etapa de investimento do desenvolvimento produtivo, que deveria ter sido realizada, coincidiu com o queda do preço do petróleo. Como a indústria depende de insumos importados, essa etapa ficou prejudicada. De qualquer maneira, esse ciclo produtivo leva até 4 anos para mostrar resultados.
Tem outra questão relacionada sobre a baixa produção no campo, que é o fato da Venezuela ser o país mais urbanizado da América do Sul. Com isso perdeu-se um pouco da cultura camponesa.
Isso é correto. Desde os anos 30 a Venezuela sofre a maior migração do campo para a cidade da América do Sul. Mas, isso não foi feito voluntariamente pelo povo venezuelano. O que acontece é uma inserção da Venezuela no mundo através do setor petroleiro a partir dos anos 1920. Os centros de poder mundial definem que a Venezuela tem que ser um produtor petroleiro e lamentavelmente deixa de lado o setor produtivo do campo. Nisso a Venezuela se diferencia de outros países da região como a Bolívia e o Equador, que possuem um importante tecido social no campo, garantindo assim a soberania alimentar.
Como a pressão internacional impacta a economia venezuelana?
Existe uma forte pressão financeira internacional sobre a Venezuela, que não podemos deixar de considerar, porque se o risco-país é de 3 mil pontos, isso quer dizer que por cada dólar que pede emprestado, ele paga 30% mais de juros, em comparação aos EUA. O que representa, na prática, um encarecimento da dívida externa.
Por que um risco-país tão elevado se a Venezuela continua pagando sua dívida?
Perguntaria algo mais: porque os compradores de títulos da dívida venezuelana não renegociavam os títulos durante todos esses anos? Porque finalmente os compradores dos títulos da dívida estavam contentes com a Venezuela como pagadora da dívida. Isso segundo dados da Bloomberg (agência de notícias dos EUA, especialista em economia). Por isso a razão dessa pressão internacional não pode se sustentar tecnicamente. A Venezuela hoje tem dificuldade, inclusive, para pagar medicamentos, pois o sistema financeiro impede que os intermediários financeiros (bancos) recebam e repassem o pagamento. Agora já não é uma questão de que o governo venezuelano não pode pedir dinheiro emprestado, é que mesmo com recursos próprios a Venezuela está sendo impedida de fazer pagamento no exterior.
De que maneira o bloqueio internacional imposto pelos EUA isso afeta a vida do venezuelano comum?
Imagine uma família que tem um dinheiro no banco para pagar as despesas fixas da casa. E mesmo tendo o dinheiro, o banco não aceita fazer a transação para realizar o pagamento. É isso que acontece com a Venezuela. É por isso o que governo teve que redesenhar uma nova engenharia comercial, porque os modelos pagadores anteriores já não eram aceitos. Você não pode imaginar quão complicado pode ser tecer uma nova engenharia financeira, para buscar novos intermediários em países amigos. Isso requer um tempo, não se faz do dia pra noite.
Como funciona a questão do bloqueio dos bancos internacionais? No Brasil os bancos já não fazem transações relacionadas a empresários ou ao governo venezuelano, por medo de multa e sanções dos EUA.
Isso é o que fazem os EUA quando querem asfixiar uma economia. Durante anos eles aplicam essa mesma política em Cuba. Em relação a Venezuela, as sanções começam com o decreto presidencial de Donald Trump, que gera um efeito dominó. O decreto impossibilita e impede inclusive as empresas estadunidenses, que atuam na Venezuela, de fazer transações bancárias. Isso gera um efeito expansivo, porque aquelas pessoas ou empresas que pensavam fazer negócios com a Venezuela estão com medo e temem sanções diretas ou indiretas. Isso não deve ser menosprezado.
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