Luis Nassif
A história é feita pelos pragmáticos e pelos construtores. Os primeiro atuam de olho no presente, guinando-se pelo mercado de opinião e pela busca do sucesso instantâneo. Os construtores atuam de olho na história.
Essa dicotomia existe até entre o grupo mais pragmático dos empreendedores. A economia está coalhada de exemplos de pessoas que descobriram um nicho de mercado, tiveram sucesso instantâneo em seus negócios e afundaram anos depois, imersos em uma vida de libações, de descontrole e de incapacidade em projetar o próprio futuro. E aqueles que pensaram na perpetuidade dos negócios, na construção paulatina do futuro.
Quando se fala em Supremo Tribunal Federal, não há outra perspectiva de julgamento que não a história. E há alguns momentos-chave, que ajudam a inscrever definitivamente a reputação de Ministros na história, como baluartes da civilização, ou como exploradores do direito.
Ontem, foi um desses dias decisivos.
De um lado, Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin e Carmen Lúcia, que exploraram com sucesso nichos do mercado. Quando o mercado demandava sensibilidade social, ofertaram visões humanistas, com o calculismo dos pragmáticos para ascender à Suprema Corte. Carmen Lúcia ofertou mais, como uma das idealizadoras do famoso manifesto contra a privatização da Vale do Rio Doce.
Quando o mercado demandou arbitrariedades, imediatamente mudaram a rota. Como os pragmáticos, trataram de gozar intensamente o presente, sem preocupações com o dia seguinte.
Na fase inicial do julgamento, usaram da falsa esperteza da retórica tosca, Barroso equiparando Lula a estupradores e assassinos. Falavam para a massa, mas também para um público informado, não necessariamente petista, não necessariamente garantistas, mas respeitadores do bom direito.
O voto constrangedor de Rosa Weber começou a escancarar o jogo de cena. A linguagem incompreensível, a citação de autores tão pouco familiares a ela, que Rosa empacava na pronúncia, especialmente dos alemães, não foi suficiente para disfarçar a lógica mais canhestra com que encerrou seu voto.
- Sou contra a prisão automática após segunda instância.
- Sei que na próxima votação da ADC (Ação Direta de Constitucionalidade), o Supremo reformará a decisão anterior, favorável.
- Mas como o que está em vigor é a última decisão, e como sou fiel ao voto dos colegiados, votarei contra o HC.
Data venia, todos entenderam, de especialistas em direito a analistas políticos.
Ali, todo o edifício retórico construído pelos pragmáticos começou a vir abaixo. E o mais trágico - para eles – ainda estava por vir: três discursos históricos, de Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello, para ampliar o contraste com as posturas mais vergonhosas da moderna história constitucional brasileira.
Lewandowski expôs de forma clara e objetiva os pontos da Constituição que consagram a presunção da inocência e o conceito do transitado em julgado. Marco Aurelio, do alto de seus 40 anos de Supremo, bradou pelo respeito à história do Supremo, pelo respeito à Constituição e às leis. E expôs para o país as manipulações de Carmen Lúcia, a Carminha, que conseguiu iludir velhos juristas progressistas com seus dengos e pães de queijo e presunção de humanismo. Assim como Carlinhos, que mudou a designação para Ayres Britto depois que Antônio Dias Toffoli assumiu apenas os dois sobrenomes. Aliás, essa história foi a grande contribuição de Dias Toffoli ao debate de ontem..
Finalmente, Celso de Mello foi desbastando a história, tirando com mãos cirúrgicas cada camada da história e mostrando a presunção da inocência desde os romanos, nos avanços civilizatórios da Revolução Francesa, como peça central do iluminismo, a presunção da inocência aceita até em tribunais militares brasileiros em plena ditadura.
Podiam ser meus olhos críticos, mas quando as câmeras se fixavam no rosto de Barroso, o que não tem medo do ridículo de se apresentar como “iluminista”, como “homem bom”, a cada volta mostravam olheiras mais profundas, a pele mais macerada, como se as luzes da madrugada expusessem a todo o país, das massas ululantes aos olhares críticos, epílogo do retrato de Dorian Gray, versão Supremo.
E o implacável Celso de Mello, o decano, rejuvenescido pela oportunidade que a história lhe reservou, mostrando que o trânsito em julgado após terceira instância, não era a “jabuticaba” brasileira, conforme Barroso, mas preceito aceito pelas constituições de Portugal e da Itália, ambas no pós-ditadura e a de Portugal servindo de modelo para a Constituição brasileira de 1988.
No final, nem a velha mídia conseguia segurar o brado de indignação de seus colunistas mais independentes. Não restou mais dúvidas sobre o jogo de cena e sobre o fato de que Lula será vítima de uma prisão política. Não apenas Lula, mas todos os avanços civilizatórios da pós-ditadura.
Como diriam os líricos nordestinos, pode ser o começo do fim, ou pode ser o fim do começo.
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