“Bolívar desperta a cada cem anos quando desperta o povo, escreveu Neruda”, me disse Rafael
quando esperávamos a chegada de Hugo Chávez nos arredores de Coro, em 2008. As imagens
repetiam-se. Onde quer que ele estivesse, aonde quer que fosse, a terra enchia-se da poeira dos
passos das pessoas com fome de justiça. Desse dia, lembro-me sempre de uma velha que trazia
nos sulcos do rosto o incomensurável sofrimento a que toda aquela gente havia sido submetida
durante décadas.
Por Bruno Carvalho
Eles não esquecem. Nunca esqueceram quem é que aos antepassados encheu as costas de
vergastadas. Têm na ponta da língua os nomes dos heróis que arrastaram multidões e esmagaram
tiranias. Homens como Guaicaipuro, o índio que liderou uma das primeiras revoltas contra os
invasores espanhóis. O meu anfitrião era um ex-guerrilheiro que havia combatido nas montanhas da
região nas Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), apoiadas pelo Partido Comunista da
Venezuela, e que dera ao seu filho o nome de José Leonardo Chirino. O mítico zambo insurgira-se
naquelas encostas, em 1795. Filho de uma indígena livre e de um escravo negro, conduziu uma
poderosa revolta, que acabou com o seu corpo sendo esquartejado.
De vez em quando, um rumor atravessava a massa humana que bloqueava todas as ruas e avenidas.
Nos telhados dos pisos térreos, soldados do corpo presidencial cerravam punhos e saudavam a
população. Rafael falou-me também de Ezequiel Zamora. Se todos conhecemos o libertador de
povos, o homem que abriu caminho à independência da maioria dos países da América do Sul,
poucos sabem quem foi o insurrecto que incendiou o país com as ideias de terra para quem trabalha.
Depois da derrota do projeto de Simón Bolívar, Zamora encheu a esperança dos pobres e arrastou
consigo também um índio guariquenho. Era Pedro Pérez Pérez, que fugiu para Ospino depois do
assassinato do seu líder. No ventre de Josefa Delgado, o guerrilheiro do século 19 deixou a semente
da revolta. O filho de ambos, Pedro Pérez Delgado, que ficou conhecido como Maisanta, tomou a
bandeira do pai e levantou-se com os camaradas de quartel contra a ditadura do General Gómez.
Acabou por morrer na prisão aos 44 anos. “Por que te conto isto?”, interrogou-me Rafael, “porque
seu bisneto é este homem que acaba de chegar”. Nesse momento, um grito ensurdecedor irrompeu
entre a multidão. Explodiam foguetes por todas as partes. A maré vermelha com dezenas de milhares
de mulheres e homens movia-se como um só corpo. Entre aquela tempestade humana, subia ao palco
Hugo Chávez, o bisneto de Maisanta.
Quando morreu, em 5 de março, há cinco anos, o mundo pôde observar, atônito, como um povo
inteiro se acotovelava para despedir-se do comandante da revolução bolivariana. A imprensa
ocidental tratava de ridicularizar os milhões que durante dias fizeram filas para ter os seus últimos
segundos junto de Hugo Chávez. Essa imagem chocava com o funeral de Margaret Thatcher ou de
outros representantes políticos dos grandes grupos políticos e econômicos. As únicas ruas que se
encheram no Reino Unido foram as que viram os trabalhadores celebrar a morte da bruxa que
promoveu o vampirismo neoliberal. O herdeiro de Maisanta foi celebrado pelas massas que queriam
agradecer que um dos seus tivesse resgatado o seu povo das garras de Washington, que, finalmente,
todas as crianças pudessem comer mais do que uma refeição, que a saúde fosse acessível a todos,
que se tivesse erradicado o analfabetismo e que a Venezuela tivesse passado para a vanguarda dos
países com mais alunos a frequentar de forma gratuita o ensino superior.
Esta manifestação coletiva de pesar percorreu o mundo. Das Caraíbas ao Oriente Médio, da África
ao Extremo Oriente. Na semana em que morreu Hugo Chávez, as paredes da Cova da Moura, na
Amadora, encheram-se com mensagens de despedida. Só não chorou aquela Europa e aquela
América loura e de olhos azuis que quer fazer da Venezuela outra vez sua colônia. Só não choraram
os que agora falam de democracia e patrocinaram o golpe de Estado fascista que acabou derrotado
pelo povo em 2002.
Hoje, quando o quadro político e econômico é semelhante àquele em que afogaram o Chile de
Salvador Allende, o imperialismo mobiliza todos os recursos midiáticos para mobilizar a opinião
pública contra o processo bolivariano. Independentemente do que venha a acontecer, a dignidade dos
que lutam para romper com o capitalismo e para defender a sua soberania são a reserva moral da
Venezuela. E como disse Hugo Chávez, “aqui no se rinde nadie, carajo”.
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