quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Afinal, quem são “os evangélicos”?


Silas Malafaia e Martin Luther King: duas faces da mesma moeda?

De tanto que se falou sobre os evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes sociais, 
talvez caiba uma pergunta: afinal, quem são “os evangélicos”?

por Ricardo Alexandre - Carta Capital


Homofóbicos, cortejados pela presidente, fundamentalistas. Massa de manobra de Silas Malafaia,
conservadores, determinantes no segundo turno das eleições. De tanto que se falou sobre os
evangélicos nas últimas semanas, nos jornais e nas redes sociais, talvez caiba uma pergunta: afinal,
quem são “os evangélicos”?
A resposta mais honesta não poderia ser mais frustrante: os evangélicos são qualquer pessoa, todo
mundo, ou, mais especificamente, ninguém. São uma abstração, uma caricatura pintada a partir do que
vemos zapeando pelos canais abertos misturado ao que lemos de bizarro nos tabloides da internet
com o que nosso preconceito manda reforçar. Dizer que “o voto dos evangélicos decidirá a eleição” é
tão estúpido quanto dizer a obviedade de que 22,2% dos brasileiros decidirão a eleição. Dizer que “os
evangélicos são preconceituosos”, significa dizer que o ser humano é preconceituoso. É não dizer
nada, na verdade.
Acreditar que há uma hegemonia de pensamento, de comportamento ou de doutrina evangélica é, em
parte, exatamente acreditar no que Silas Malafaia gosta de repetir, mas é, em parte, desconhecer a
história. A diversidade de pensamento é a razão de existir da reforma protestante. E continuou sendo
pelos séculos seguintes, quando as igrejas reformadas do século 16 deram origem ao movimento
evangélico, aos pentecostais, e estes aos neopentecostais, todos microdivididos até o limite do possível,
graças, novamente, à diversidade de pensamento – sobre forma de governo, vocação e pequenos e
grandes pontos doutrinários. E boa parte dessas denominações não tem sequer organização central nem
“presidência”, muito menos representantes possíveis, com as decisões sendo tomadas nas comunidades
locais, por votação democrática.
Assim como não existe “os evangélicos” também não existe “os pentecostais”, nem “os
assembleianos”: dizer que Malafaia é o “papa da Marina Silva” como disse Leonardo Boff, apenas
porque ambos são membros da Assembléia de Deus, é ignorar que, por trás dos 12,3 milhões de
membros detectados pelo IBGE, a denominação é rachada entre ministérios Belém, Madureira, Santos,
Bom Retiro, Ipiranga, Perus e diversos outros, cada um com seu líder, sua politicagem e sua aplicação
doutrinária. A Assembléia de Deus Vitória em Cristo de Malafaia, aliás, sequer pertence à Convenção
Geral das Assembleias de Deus no Brasil.
Ignorância parecida se manifesta em relação ao uso do termo “fundamentalista”, como sinônimo de
“literalista”, aquele incapaz de metaforizar as verdades morais dos livros da Bíblia. A teologia cristã
debate há dois mil anos sobre a observação, interpretação e aplicação dos escritos sagrados, quais são
alegóricos e quais são históricos, quais são “poesias” e quais devem ser tomados ao pé da letra. O
deputado Jean Wyllys, colunista da Carta Capital, do alto de alguma autoridade teológica presumida, já
chegou à sua conclusão: o que não for leitura liberal, é fundamentalista e, portanto, uma ameaça às
minorias oprimidas. (Liberalismo teológico é uma corrente do final do século 19 que propôs uma
leitura crítica das escrituras, completamente alegorizada, negando sua autoridade sobrenatural, a
existência dos milagres, e separando história e teologia).
Só que isso simplesmente não é verdade. Dentro da multifacetação das igrejas de tradição evangélicas,
há as chamadas “inclusivas”, mas há diversas igrejas históricas, tradicionais, teologicamente ortodoxas,
que acreditam nos absolutos da “sola scriptura” da Reforma Protestante, mas que têm política
acolhedora e amorosa com as minorias. 
Algumas criaram pastorais para tratar da questão homossexual, outras trabalham para integrá-los em
seus quadros leigos; ou, ainda, como disse o pastor batista Ed René Kivitz, estão mais dispostos a
aprender como tratar “uma pessoa que está diante de mim dizendo ter sido rejeitado pela família, pela
igreja” do que discutir a literalidade dos textos do Velho Testamento.
O panorama da questão pode ser melhor entendido em Entre a cruz e o arco-íris: A complexa relação
dos cristãos com a Homoafetividade (de Marília de Camargo César, da Editora Autêntica), livro que
tive a honra de editar. 
Nele, o pastor batista e sociólogo americano Tony Campolo, ex-conselheiro do presidente Bill Clinton,
diz: “Se você vai dizer à comunidade homossexual que em nome de Jesus você a ama (...) não teria
que lutar por políticas públicas que demonstrem que você as ama? Pode haver amor sem justiça? 
Eu luto pela justiça em favor de gays e lésbicas, porque em nome de Jesus Cristo eu os amo.”
Campolo, entretanto, faz distinção entre direitos e casamento: “O governo não deve se envolver nem
declarar, de forma alguma, o que é casamento, quem pode ou não se casar”, ele disse. “Governo existe
para garantir os direitos das pessoas. 
Casamento é um sacramento da igreja – governos não devem decidir quem deve ou não receber esse
sacramento.” Campolo acredita que esta será a visão dominante entre cristãos americanos “em cinco ou
seis anos”.
Entre os evangélicos brasileiros, há quem pense desde já como Campolo – distinguindo união civil de
casamento. Há quem pense de forma ainda mais radical: que a união civil, com implicações
patrimoniais e status de família, deveria valer não apenas para casais homossexuais, mas para irmãos,
primos ou quem quer que se entenda como família. Há quem defenda o acolhimento dos gays nas
igrejas, mas que se reserve o celibato para eles. 
Quem, embora sabendo que mais da metade das famílias brasileiras já não são no formato pai-mãe-
filhos, ainda luta para restabelecer esse padrão idealizado. Há, sim, quem acredite que o seu conjunto
de doutrinas e o seu modo de vida são fundamentais. Há aqueles ainda que, enquanto discutimos aqui,
estão mais preocupados se a melhor tradução do grego é a João Ferreira de Almeida ou a Nova Versão
Internacional.
E há quem acorde diariamente acreditando ser o porta-voz do “povo de Deus”, pague espaço em redes
de televisão para multiplicar esse delírio (mas, a julgar pelo 1% de intenção de voto do Pastor
Everaldo, somente ativistas gays e jornalistas desmotivados acreditam nesse discurso). Esses são “os
evangélicos”.
Na fatídica sexta-feira em que o PSB divulgou seu programa de governo, enquanto Malafaia gritava no
Twitter em CAPSLOCK furibundo, o pastor presbiteriano Marcos Botelho, postou: “Marina, que bom
que vc recebeu os líderes do movimento LGBTs, receba as reivindicações com a tua coerência e
discernimento de sempre e um compromisso com o estado laico que é sua bandeira. Vamos colocar
uma pedra em cima dessa polarização ridícula entre gays e evangélicos que só da IBOPE para líderes
políticos e pastores oportunistas.”
Botelho não representa “os evangélicos” porque não existe “os evangélicos”. Mas Marcos Botelho
existe e é evangélico. Assim como existe William Lane Craig, o filósofo que convida periodicamente
Richard Dawkins para um debate público, do qual este sempre se esquiva; existe o geneticista Francis
Collins vencendo o William Award da Sociedade Americana de Genética Humana; existe o presidente
Jimmy Carter, dando aula na escola bíblica no domingo e sendo entrevistado para a capa da Rolling
Stone por Hunter Thompson na segunda-feira; existe o pastor congregacional inglês John Harvard
tirando dinheiro do próprio bolso para fundar uma universidade “para a glória de Deus” nos Estados
Unidos que leva seu sobrenome até hoje; existe o pastor batista Martin Luther King como o maior
ativista de todos os tempos; existe o jovem paulista Marco Gomes, o “melhor profissional de marketing
do mundo”, pedindo licença para “falar uma coisa sobre os evangélicos”. 
E existe o Feliciano, o Edir Macedo, a Aline Barros, o Thalles Roberto, o Silas Malafaia e o mercado
gospel. Como existe bancada evangélica, mas existem os que lutaram pela “separação entre igreja e
estado” na constituição, e existem os que acreditam que levar Jesus Cristo para a política é trabalhar
não para si, mas para os menos favorecidos.
Existe o amor e existe a justiça, como existe o preconceito, o dogmatismo, o engano, o medo, a vaidade e a corrupção. Não porque somos evangélicos, mas porque somos humanos.
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