terça-feira, 6 de março de 2012

‘Eles vão me matar’

Por Ana Aranha

“Nesse rio aqui também apareceu um morto, levou 13 dias para virem retirar o corpo. A gente espantava os urubus com uma palha”.
Com colete a prova de balas, chacoalhando no banco de trás da viatura da Força Nacional de Segurança, essa é a quarta vez que a produtora e líder rural Nilcilene Miguel de Lima aponta lugares onde encontrou corpos furados a bala nas estradas do sul de Lábrea, município do Amazonas. “Já teve vez que não apareceu ninguém para buscar. O povo enterrou por aí mesmo”.
 É fim de tarde. A viatura tem que chegar na casa de Nilcelene antes do escurecer, onde dois policias passam a noite em vigília. Alguns quilômetros antes do destino, ela se agita ao ver uma picape azul no sentido oposto da estrada:
“É ele! É o carro do Pitbull.”
“Pitbull” é o apelido de Vincente Horn, um dos motivos para a proteção que recebe de nove homens da Força Nacional. Ele é um dos autores da longa lista de ameaças contra a vida de Nilcilene, que já perdeu a conta de quantas vezes foi jurada de morte pelos cães de guarda de grileiros e madeireiros.
As ameaças começaram em 2009, quando ela assumiu a presidência da associação Deus Proverá, criada pelos pequenos produtores do assentamento para defender o grupo contra as invasões de terra e roubo de árvores. No ano seguinte, depois de fazer denúncias e abaixo-assinados contra os criminosos, Nilcilene foi espancada e teve sua casa queimada em um incêndio anunciado.  Em maio de 2011, foi obrigada a fugir enrolada em um lençol para despistar o pistoleiro que estava de campana no seu portão. A equipe da Força Nacional foi deslocada em outubro para garantir que a líder pudesse voltar para casa e continuar denunciando os problemas da região.
Mesmo com a proteção ostensiva, as mãos de Nilcilene tremem enquanto a picape azul se aproxima e o silêncio pesa dentro da viatura. O policial na direção enrijece as costas, o copiloto engatilha seu fuzil. A estrada de terra é estreita, obrigando os carros a passar a menos de um metro de distância. Pitbull não se intimida. Ele reduz a velocidade, abre sua janela e, com um largo sorriso no rosto, acena um tchau.
Enquanto os carros se afastam, Nilcilene aponta os galões de gasolina que deslizam vazios na caçamba da picape:
“Essa noite a motosserra vai comer.”
A formação da quadrilha de pistoleiros
Mesmo com escolta armada na porta de sua casa, Nilcilene não dorme sem a ajuda de remédios. Ela sabe que está temporariamente a salvo de uma realidade que não mudou. A inclusão de seu nome no programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (uma parceria entre a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça) foi, até agora, a única ação do governo federal em resposta ao crime organizado que se fortalece na região.
Lábrea fica no sudoeste do Amazonas, fim da Transamazônica, na fronteira com a mata nativa. Para chegar ao sul do município, onde fica a comunidade de Nilcilene, é preciso entrar por Rondônia. É um daqueles lugares onde o estado brasileiro não chegou, solo fértil para quem vive fora da lei.
Além de não ter energia, telefone, posto de saúde ou delegacia, as cerca de 800 famílias que moram lá vivem sob o controle de uma quadrilha de pistoleiros. São mais de 15 “profissionais” que vieram de Rondônia, Mato Grosso e Bolívia. Eles ficam à disposição dos grileiros e madeireiros, que passam por cima do que (e de quem) for preciso para chegar ao ouro verde: as florestas recheadas de ipês, cedros e angelins.
A Pública colheu mais de 30 depoimentos de famílias locais sobre o modo como a quadrilha age. São relatos de agressões físicas a adultos e adolescentes, ameaças de morte, queima de casas, roubos e revistas seguidas de saque.
Os entrevistados são assentados, seringueiros e pequenos produtores rurais que têm documentos para atestar que são donos da terra. Muitos registraram ocorrências dos crimes na polícia e enviaram cartas pedindo ajuda ao governo federal, estadual, Ministério Público e Ibama. Mas nunca tiveram resposta.
A quadrilha funciona assim. Os grileiros contratam os pistoleiros para fazer o “despejo”. Primeiro, invadem a terra e avisam os agricultores que sua terra foi “comprada”. Geralmente dão um prazo para as famílias saírem, enquanto erguem cercas e porteiras. Vencido o prazo, começam a intimidação: bloqueiam as estradas de acesso e fazem rondas diárias atirando para o alto. Nessa fase, se cruzam com os produtores rurais pelo lote, fazem revistas, saqueiam o que eles carregam e até os agridem fisicamente. É nesse ponto que muitas famílias deixam suas casas por um tempo, “até baixar a poeira”. Muitas vezes, quando voltam, a casa foi queimada com tudo dentro.
 sso acontece em lotes individuais e dentro dos dois assentamentos demarcados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Já os madeireiros simplesmente entram na mata nativa, que tem que ser preservada pelos assentados e pequenos proprietários, derrubam e “puxam” as árvores pelas estradas durante a noite. Eles contratam pistoleiros para evitar reação do proprietário. Muitos produtores já estão tão intimidados pela quadrilha que assistem sem reclamar.
Para quem evoca a justiça, mostrando os títulos emitidos pelo governo, a resposta padrão é: “quem demarca terra é a minha pistola”. Ou “justiça e merda aqui é a mesma coisa”.
As famílias que ainda se apegam à terra ou às árvores, são juradas de morte. As mulheres deixam os filhos na casa de parentes e passam as noites em claro. Os homens soltam madeiras no piso para criar rotas de fuga pelo chão. Quando as ameaças sobem de tom, alguns passam noites fora de casa, ao relento. Para não serem encontrados, dormem sobre uma tábua escondida no meio da lavoura.
Do seringal à Brasília
Nilcilene já passou por todas essas etapas. Ela é graduada nas batalhas por terra da Amazônia.
Filha de um soldado da borracha, Nilce, como é chamada pelos amigos, nasceu em um seringal no Acre. Ela cresceu catando castanhas com os 14 irmãos, período em que apelidou a árvore que lhe dava leite e comida de castanheira-mãe. Aos 10 anos, sua família foi expulsa da terra e fugiu para a Bolívia. Antes de completar os 20, já com quatro filhos, Nilce perdeu o primeiro marido. Ele foi encontrado morto em um rio depois de resistir às ordens para sair de sua casa.
Ela criou os filhos sozinha e chegou ao sul de Lábrea em 2003, quando um grupo de lavradores sem terra começava a montar o acampamento onde hoje fica o assentamento Gedeão, que ela lidera. O nome oficial do assentamento é Projeto de Desenvolvimento Sustentável Gedeão – uma homenagem ao primeiro líder do grupo, assassinado em 2006.
É difícil saber quantas pessoas já morreram em conflitos no sul de Lábrea. Como muitos simplesmente desaparecem, o número é resultado de subnotificações. Desde que o assentamento foi criado, há registro de 8 assassinatos em decorrência de conflito de terra.
Um deles ocorreu duas semanas depois que Nilce fugiu de casa. Em maio de 2011, logo depois que o Ibama apreendeu motosserras durante uma vistoria no sul de Lábrea, os pistoleiros saíram em busca dos possíveis denunciantes. Os primeiros da lista eram Nilce e Adelino Ramos, conhecido como Dinho, que era líder do assentamento Curuquetê, também no sul de Lábrea.
Ela escapou porque foi avisada e fugiu. Dias depois, recebeu a ligação de Dinho: “Parceira, eu tô correndo vários perigos e você também. Cuidado”. Dinho foi assassinado com seis tiros à queima roupa no meio de uma feira no dia 27 de maio.
O assassino, um motorista de caminhões de toras do sul de Lábrea, entregou-se para a polícia três dias depois. Mas foi solto no fim do ano. Em janeiro, enquanto a reportagem da Pública estava na região, ele foi assassinado – crime imediatamente interpretado pela população local como queima de arquivo.
A morte de Dinho foi um dos fatores que levou a Secretaria de Direitos Humanos a dar proteção a Nilce. Depois de seis meses de exílio e muitos apelos da Comissão Pastoral da Terra, ela entrou no seleto time de 6 lideranças rurais em todo o país que têm escolta 24 horas pelo programa Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. O programa recebe pressão da mídia nacional e internacional para incluir outros líderes ameaçados.
Contando com Nilce, em Lábrea estão os dois únicos líderes que têm direito a escolta 24 horas no estado do Amazonas. O outro protegido fica na sede do município, recordista de pessoas juradas de morte no estado, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra. Há 12 registros oficiais de pessoas ameaçadas devido a conflitos da terra – mas é possível que hajam outros lavradores na mesma situação com medo de fazer denúncias.
Missão em crise
A inclusão de Nilce no programa foi fundamental para que ela pudesse voltar à sua terra e denunciar os crimes que ocorrem no sul de Lábrea. Mas, pelo menos por enquanto, os criminosos continuam atuando livremente.
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