Por Ana Aranha
“Nesse rio aqui também apareceu um morto, levou 13 dias para virem retirar o corpo. A gente espantava os urubus com uma palha”.
Com colete a prova de balas, chacoalhando no banco de trás da viatura
da Força Nacional de Segurança, essa é a quarta vez que a produtora e
líder rural Nilcilene Miguel de Lima aponta lugares onde encontrou
corpos furados a bala nas estradas do sul de Lábrea, município do
Amazonas. “Já teve vez que não apareceu ninguém para buscar. O povo
enterrou por aí mesmo”.
É fim de tarde. A viatura tem que chegar na casa de Nilcelene antes
do escurecer, onde dois policias passam a noite em vigília. Alguns
quilômetros antes do destino, ela se agita ao ver uma picape azul no
sentido oposto da estrada:
“É ele! É o carro do Pitbull.”
“Pitbull” é o apelido de Vincente Horn, um dos motivos para a
proteção que recebe de nove homens da Força Nacional. Ele é um dos
autores da longa lista de ameaças contra a vida de Nilcilene, que já
perdeu a conta de quantas vezes foi jurada de morte pelos cães de guarda
de grileiros e madeireiros.
As ameaças começaram em 2009, quando ela assumiu a presidência da
associação Deus Proverá, criada pelos pequenos produtores do
assentamento para defender o grupo contra as invasões de terra e roubo
de árvores. No ano seguinte, depois de fazer denúncias e
abaixo-assinados contra os criminosos, Nilcilene foi espancada e teve
sua casa queimada em um incêndio anunciado. Em maio de 2011, foi
obrigada a fugir enrolada em um lençol para despistar o pistoleiro que
estava de campana no seu portão. A equipe da Força Nacional foi
deslocada em outubro para garantir que a líder pudesse voltar para casa e
continuar denunciando os problemas da região.
Mesmo com a proteção ostensiva, as mãos de Nilcilene tremem enquanto a
picape azul se aproxima e o silêncio pesa dentro da viatura. O policial
na direção enrijece as costas, o copiloto engatilha seu fuzil. A
estrada de terra é estreita, obrigando os carros a passar a menos de um
metro de distância. Pitbull não se intimida. Ele reduz a velocidade,
abre sua janela e, com um largo sorriso no rosto, acena um tchau.
Enquanto os carros se afastam, Nilcilene aponta os galões de gasolina que deslizam vazios na caçamba da picape:
“Essa noite a motosserra vai comer.”
A formação da quadrilha de pistoleiros
Mesmo com escolta armada na porta de sua casa, Nilcilene não dorme
sem a ajuda de remédios. Ela sabe que está temporariamente a salvo de
uma realidade que não mudou. A inclusão de seu nome no programa de
Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (uma parceria entre a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça) foi,
até agora, a única ação do governo federal em resposta ao crime
organizado que se fortalece na região.
Lábrea fica no sudoeste do Amazonas, fim da Transamazônica, na
fronteira com a mata nativa. Para chegar ao sul do município, onde fica a
comunidade de Nilcilene, é preciso entrar por Rondônia. É um daqueles
lugares onde o estado brasileiro não chegou, solo fértil para quem vive
fora da lei.
Além de não ter energia, telefone, posto de saúde ou delegacia, as
cerca de 800 famílias que moram lá vivem sob o controle de uma quadrilha
de pistoleiros. São mais de 15 “profissionais” que vieram de Rondônia,
Mato Grosso e Bolívia. Eles ficam à disposição dos grileiros e
madeireiros, que passam por cima do que (e de quem) for
preciso para chegar ao ouro verde: as florestas recheadas de ipês,
cedros e angelins.
A Pública colheu mais de 30 depoimentos de famílias locais sobre o
modo como a quadrilha age. São relatos de agressões físicas a adultos e
adolescentes, ameaças de morte, queima de casas, roubos e revistas
seguidas de saque.
Os entrevistados são assentados, seringueiros e pequenos produtores
rurais que têm documentos para atestar que são donos da terra. Muitos
registraram ocorrências dos crimes na polícia e enviaram cartas pedindo
ajuda ao governo federal, estadual, Ministério Público e Ibama. Mas
nunca tiveram resposta.
A quadrilha funciona assim. Os grileiros contratam os pistoleiros
para fazer o “despejo”. Primeiro, invadem a terra e avisam os
agricultores que sua terra foi “comprada”. Geralmente dão um prazo para
as famílias saírem, enquanto erguem cercas e porteiras. Vencido o prazo,
começam a intimidação: bloqueiam as estradas de acesso e fazem rondas
diárias atirando para o alto. Nessa fase, se cruzam com os produtores
rurais pelo lote, fazem revistas, saqueiam o que eles carregam e até os
agridem fisicamente. É nesse ponto que muitas famílias deixam suas casas
por um tempo, “até baixar a poeira”. Muitas vezes, quando voltam, a
casa foi queimada com tudo dentro.
sso acontece em lotes individuais e dentro dos dois assentamentos
demarcados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra).
Já os madeireiros simplesmente entram na mata nativa, que tem que ser
preservada pelos assentados e pequenos proprietários, derrubam e
“puxam” as árvores pelas estradas durante a noite. Eles contratam
pistoleiros para evitar reação do proprietário. Muitos produtores já
estão tão intimidados pela quadrilha que assistem sem reclamar.
Para quem evoca a justiça, mostrando os títulos emitidos pelo
governo, a resposta padrão é: “quem demarca terra é a minha pistola”. Ou
“justiça e merda aqui é a mesma coisa”.
As famílias que ainda se apegam à terra ou às árvores, são juradas de
morte. As mulheres deixam os filhos na casa de parentes e passam as
noites em claro. Os homens soltam madeiras no piso para criar rotas de
fuga pelo chão. Quando as ameaças sobem de tom, alguns passam noites
fora de casa, ao relento. Para não serem encontrados, dormem sobre uma
tábua escondida no meio da lavoura.
Do seringal à Brasília
Nilcilene já passou por todas essas etapas. Ela é graduada nas batalhas por terra da Amazônia.
Filha de um soldado da borracha, Nilce, como é chamada pelos amigos,
nasceu em um seringal no Acre. Ela cresceu catando castanhas com os 14
irmãos, período em que apelidou a árvore que lhe dava leite e comida de
castanheira-mãe. Aos 10 anos, sua família foi expulsa da terra e fugiu
para a Bolívia. Antes de completar os 20, já com quatro filhos, Nilce
perdeu o primeiro marido. Ele foi encontrado morto em um rio depois de
resistir às ordens para sair de sua casa.
Ela criou os filhos sozinha e chegou ao sul de Lábrea em 2003, quando
um grupo de lavradores sem terra começava a montar o acampamento onde
hoje fica o assentamento Gedeão, que ela lidera. O nome oficial do
assentamento é Projeto de Desenvolvimento Sustentável Gedeão – uma
homenagem ao primeiro líder do grupo, assassinado em 2006.
É difícil saber quantas pessoas já morreram em conflitos no sul de
Lábrea. Como muitos simplesmente desaparecem, o número é resultado de
subnotificações. Desde que o assentamento foi criado, há registro de 8
assassinatos em decorrência de conflito de terra.
Um deles ocorreu duas semanas depois que Nilce fugiu de casa. Em maio
de 2011, logo depois que o Ibama apreendeu motosserras durante uma
vistoria no sul de Lábrea, os pistoleiros saíram em busca dos possíveis
denunciantes. Os primeiros da lista eram Nilce e Adelino Ramos,
conhecido como Dinho, que era líder do assentamento Curuquetê, também no
sul de Lábrea.
Ela escapou porque foi avisada e fugiu. Dias depois, recebeu a
ligação de Dinho: “Parceira, eu tô correndo vários perigos e você
também. Cuidado”. Dinho foi assassinado com seis tiros à queima roupa no
meio de uma feira no dia 27 de maio.
O assassino, um motorista de caminhões de toras do sul de Lábrea,
entregou-se para a polícia três dias depois. Mas foi solto no fim do
ano. Em janeiro, enquanto a reportagem da Pública estava na região, ele
foi assassinado – crime imediatamente interpretado pela população local
como queima de arquivo.
A morte de Dinho foi um dos fatores que levou a Secretaria de
Direitos Humanos a dar proteção a Nilce. Depois de seis meses de exílio e
muitos apelos da Comissão Pastoral da Terra, ela entrou no seleto time
de 6 lideranças rurais em todo o país que têm escolta 24 horas pelo
programa Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos. O programa recebe
pressão da mídia nacional e internacional para incluir outros líderes ameaçados.
Contando com Nilce, em Lábrea estão os dois únicos líderes que têm
direito a escolta 24 horas no estado do Amazonas. O outro protegido fica
na sede do município, recordista de pessoas juradas de morte no estado,
segundo dados da Comissão Pastoral da Terra. Há 12 registros oficiais de pessoas ameaçadas
devido a conflitos da terra – mas é possível que hajam outros
lavradores na mesma situação com medo de fazer denúncias.
Missão em crise
A inclusão de Nilce no programa foi fundamental para que ela pudesse
voltar à sua terra e denunciar os crimes que ocorrem no sul de Lábrea.
Mas, pelo menos por enquanto, os criminosos continuam
atuando livremente.
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