Por Marcelo Semer no Blog Sem Juízo.
O desfile das escolas de samba pode até ser o maior espetáculo
da terra. Mas a televisão brasileira ainda não aprendeu a transmiti-lo.
Há uma forte razão que obriga todas as escolas a terem um samba-enredo e
que seus integrantes sejam estimulados a cantá-lo e sambar com ele. Mas
quem assiste ao desfile pela TV, logo percebe que o áudio é um mero
detalhe.
A transmissão não se ocupa dele. Os sons parecem todos iguais e se não
fosse por dois minutos de legenda, nem sequer saberíamos qual a música
que cada escola escolheu para guiá-la.
Os enredos são mesmo complexos, falam de muitas coisas diferentes ao
mesmo tempo. Mas o carnavalesco nem precisaria se preocupar em armar uma
ordem mais ou menos lógica para tentar explicá-lo.
A transmissão da TV é randômica, vai e vem para frente e para trás
freneticamente, alternando alas, destaques e carros e impossibilita ao
espectador saber quem está na frente, quem está atrás.
A bateria é o pulmão de qualquer escola de samba, e quem quer que já a
tenha ouvido ao vivo tem exata noção de sua importância e da emoção que
provoca. Mas o som que ela produz é quase inaudível nas transmissões.
Os instrumentos dos ritmistas mais parecem fantasias. Como todo o desfile, aliás, muito mais plástico que acústico.
A TV Globo continua tratando os espectadores pela doutrina Willian
Bonner, segundo a qual quem está do outro lado da tela são milhões de
Homer Simpson.
É preciso explicar cada uma das cenas como se estivéssemos assistindo a
uma inusitada cerimônia aborígene ou a transmissão do parlamento sueco.
Mas os comentários que ouvimos na longa transmissão forjam, mais ainda
que os enredos incompreensíveis, aquilo que o compositor e humorista
Stanislaw Ponte Preta denominava "samba do crioulo doido".
O falso suicídio de Wladimir Herzog foi um tema muito "desenvolvido",
diz o narrador. Antônio Conselheiro, líder da revolta de Canudos, vira
mártir da independência brasileira. E por aí vão os comentários que nos
impedem de ouvir as músicas.
Samba e enredo, cultura e alegria, engenho e arte, tudo sai de cena quando o assunto é encontrar celebridades na avenida.
Como madrinhas de bateria, destaques de alegorias ou diretores ad-hoc,
toda escola tem os seus globais, que serão fartamente iluminados pelas
câmaras da casa durante todo o desfile e entrevistados em plena ação,
mesmo que para isso alas inteiras devam sucumbir na sombra.
Descobre-se, ao final, entre tantas vinhetas, salas especiais e recursos visuais repetidos ad nauseam, que a vedete do Carnaval é sempre a própria emissora.
E como se não bastasse trucidar o desfile, a Globo ainda estimula seus
milhões de telespectadores a opinar pelo telefone justamente sobre
aquilo que não viram.
Como escolher entre os vários sambas-enredo que a emissora impediu que
conhecêssemos? Como dar nota às baterias cujos sons nos foram sonegados?
Não, a nota não tem nenhum valor, dizem eles insistentemente; apenas
preço: trinta e poucos centavos mais os impostos etc.
Mudar de canal, como se sabe, é impossível.
Formadora constante de monopólios, a TV, alavanca do capitalismo, está
se tornando, paradoxalmente, a maior inimiga da livre concorrência.
Para corridas, jogos ou eventos musicais, não existe mais opção nesse liberalismo totalitário.
Vai chegar um dia que alguma emissora, possivelmente a própria Globo,
terá exclusividade na cobertura de uma passeata, na apuração da eleição
ou na posse de um presidente.
Para as escolas, o dinheiro engrossa o caixa não apenas pelos direitos
de transmissão, mas cada vez mais pelo uso do merchandising.
Produtos, locais ou pessoas vão se tornando enredos à medida em que são
bons de retorno financeiro - é a tal força da grana que ergue e destrói
as coisas belas.
Assistimos à escola bancada pelo iogurte, com uma ala de lactobacilos,
ou à que rende homenagem à mulher, alojando rimas da esponja de limpeza
patrocinadora nas estrofes do samba.
Se o mundo é um moinho, como já ensinava Cartola, e vai mesmo reduzir
nossas ilusões a pó, talvez devêssemos é nos dar por satisfeitos,
enquanto o Carnaval não se transforma num enorme reality show.
__________________________________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário