Alguém morreu em Cuipiranga
POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Quem é que morreu em Cuipiranga? Foi algum cuipiranguense ilustre?
Por que o cemitério dessa modesta comunidade ribeirinha está lotado com
tanta gente nesta manhã de domingo, 8 de janeiro de 2012? Eram previstas
250 a 300 pessoas que sairiam às 8 horas caminhando pelo trapiche.
Quantas vieram? Quem são elas? Por que desfilam, tão compenetradas,
entre covas, tumbas e jazigos? Onde vão depositar as coroas de flores
que carregam? De quem é, afinal, o velório? Qual o objetivo dessa
romaria fúnebre? Aliás, pra começo de conversa, alguém aí, por favor,
sabe me informar onde é mesmo que fica Cuipiranga?
A última pergunta pode ser esclarecida imediatamente. Cuipiranga tem
um lugar reservado no mapa paisagístico, histórico e afetivo do Pará.
Geograficamente, está situada numa língua de terra entre os rios Tapajós
e Amazonas, quase em frente à Santarém. As questões sobre cemitério,
morte e velório, porém, só podem ser respondidas se soubermos quem são
os integrantes da romaria e o que fizeram juntos, ali, nos dias
anteriores à visita ao cemitério.
Eles são moradores de Cuipiranga e das comunidades vizinhas,
ribeirinhos, pescadores, artesãos, trabalhadores rurais, além de
estudantes e professores da recém criada Universidade Federal do Oeste
do Pará (UFOPa), alguns cineastas, antropólogos e historiadores vindos
de São Paulo, de Belém, de Santarém.
Durante três dias, essas pessoas compartilharam um conjunto de
atividades. No primeiro dia, levantaram o mastro da festa, celebraram
cerimônia religiosa na praia e dançaram o marambiré, uma versão da folia
de reis, com coreografia de passos bem marcados, na qual são
apresentados vários personagens: o Rei Congo, vestido de branco, casaco
adornado com talabarte de couro escuro e botas com enfeites de prata; a
Rainha Mestra trajando vestido comprido, de seda em tons dourados, todo
bordado; os vassalos-homens com calça comprida preta e as mulheres com
vestido estampado.
No sábado, dia 7, fizeram uma caminhada de Cuipiranga para a
comunidade de Guajará, onde assistiram vários documentários. No retorno,
ocorreu o lançamento do filme O Cônego, que conta episódios da história
da Cabanagem, com a presença do diretor Paulo Miranda e do ator José
Jorge de Lana, seguido de debates e de uma festa dançante. Finalmente no
domingo, depois da romaria ao cemitério, houve um ritual com a
derrubada do mastro e um almoço de despedida. Todas essas atividades
permitiram que nesses três dias fosse ouvido o brado retumbante de
Cuipiranga.
O grito do Cuipiranga
Afinal, que celebração é essa que mistura festa, dança, reza, cinema,
debate e visita ao cemitério? Tudo isso ocorreu dentro da programação
do II Encontro da Cabanagem, um evento organizado pela Associação dos
Moradores de Cuipiranga, com o apoio do ‘Projeto Memórias da Cabanagem’,
coordenado pelo antropólogo e frade franciscano, Florêncio Almeida Vaz,
professor do Programa de Antropologia e Arqueologia da UFOPa. Os
participantes se reuniram para celebrar a memória e a atualidade da luta
dos cabanos, protagonistas da revolta popular mais importante da
história da Amazônia, que chegou a tomar o poder e governar por vários
meses.
Agora sim, é possível responder a pergunta: Quem, afinal, morreu em
Cuipiranga? Um montão de gente que participou da Cabanagem (1835-1840):
índios, negros, mestiços, gente pobre e lascada. Durante um pouco mais
de cinco anos, segundo as estatísticas oficiais, o conflito armado matou
40.000 pessoas, o que representa um quinto de toda a população
recenseada do Grão-Pará naquela época. Cuipiranga foi justamente o lugar
do Baixo Amazonas onde os cabanos tiveram o seu mais resistente
acampamento. Foi ali onde se deu uma das batalhas mais decisivas, com
muitos cabanos sendo abatidos e enterrados em vala comum.
Esses mortos, presentes ainda hoje na memória das famílias de
Cuipiranga, é que foram chorados e reverenciados, entre outros o chefe
cabano Antonio Maciel Branches, cuja trineta Maria Branches Oliveira
ainda guarda vivas as lembranças transmitidas através da tradição oral.
Os relatos de 80 moradores foram recolhidos por pesquisadores da
Caravana da Memória Cabana, que em maio de 2010 percorreu dez
comunidades do Baixo Tapajós, levando antropólogos, fotógrafos,
cineastas, jornalistas. Os resultados são revelados por Florêncio Vaz,
coordenador do projeto:
- Temos agora um arquivo de quase 50 horas de entrevistas em vídeo e
outras tantas em áudio, o que já constitui seguramente o maior arquivo
do tipo sobre as memórias da Cabanagem no Oeste do Pará. Aproximadamente
80 pessoas de diferentes comunidades deram seus depoimentos.
Museu
O documentário “Cuipiranga”, de Cristiano Burlan, incorporou muitos
depoimentos de descendentes dos cabanos, mas também de pesquisadores. O
filme foi exibido durante o I Encontro da Cabanagem, em janeiro de 2011.
Agora, outro documentário “Memórias Cabanas” de Cloadoaldo Correa, foi
lançado no II Encontro. Também está saindo do forno um romance da
antropóloga Deborah Goldemberg, uma das coordenadoras da Caravana, além
de artigos, dissertações e teses universitárias. O material coletado é
tão rico que motivou o debate sobre a criação do Museu Aberto da
Cabanagem.
Lá, no cemitério, está o embrião do Museu Aberto da Cabanagem,
formado pelo monumento-memorial erguido em janeiro de 2011. As pessoas
que neste domingo, 8 de janeiro de 2012, o visitaram, puderam ler o
texto gravado numa placa em homenagem aos cabanos, que inicia com os
versos de Pablo Neruda escritos para outro contexto:
“175 ANOS DA CABANAGEM /“Ainda que os pés pisem mil anos neste lugar /
Não apagarão o sangue dos que aqui caíram / E não se extinguirá a hora
em que caístes / Ainda que mil vozes cruzem este silêncio”. (Pablo
Neruda) /Nesta terra vermelha, nós cidadãos(ãs) amazônidas nos reunimos /
Para fazer memória da luta daqueles / Que aqui se levantaram contra a
opressão / E ousaram decidir os seus próprios destinos / Este ideal é a
nossa herança./ Cuipiranga, 07.09.2011.
O historiador Fernand Braudel escreveu em algum lugar que “a condição
de ser é ter sido”. Dessa forma, a romaria ao cemitério de Cuipiranga
quer provar que podemos ser, porque fomos. As lutas sociais de hoje na
Amazônia, entre outras as movidas contra os estragos ambientais e
sociais causados pelas hidrelétricas, ganham maior consistência quando
ancoradas nas experiências do passado.
A Cabanagem, que revolucionou a Amazônia há mais de 170 anos, faz
parte do nosso presente, porque o passado, na realidade, não reside
antes do presente, mas dentro do presente, ou como quer o poeta João
Cabral de Mello Neto, “o passado é o que não passou do que passou”. É
isso o que nos dizem os romeiros de Cuipiranga. A Cabanagem não passou. A
pergunta mais apropriada, então, não é quem morreu em Cuipiranga, mas
quem está ressuscitando.
P.S.: Entre outros trabalhos sobre a cabanagem, vale
a pena ler: 1) Luis Balkar Sá Peixoto Pinheiro – “Visões da Cabanagem:
uma revolta popular e suas representações na historiografia”. Manaus.
Editora Valer, 2001; 2) Leandro Mahalem de Lima: “Rios Vermelhos.
Perspectivas e posições de sujeito em torno da noção de ‘cabano’ na
Amazônia, em meados de 1835”. Dissertação de Mestrado orientada pela
doutora Marta Rosa Amoroso e defendida em 2008.
O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de
Estudos dos Povos Indígenas
(UERJ), pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
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