quarta-feira, 21 de maio de 2008

ANÁLISES E OPINIÕES

A DECADÊNCIA DE UM CLÃ
(Balanço das primárias democratas)

Por Idelber Avelar

O declínio de um clã tende a ser mais melancólico que o de uma pessoa, já que ao indivíduo costuma estar dada a possibilidade de ir descendo com um pouco mais de dignidade. Os clãs, especialmente os da política, têm excessivas obrigações, digamos, teatrais. Quanto maiores e mais poderosos são, mais ampla será a discussão interna acerca de como admitir, com classe, que sofreram a derrota emblemática, a que indica, nas palavras do NYT, uma troca da guarda. É a história dos Clinton nos últimos poucos meses e, especialmente, nesta semana.
“Derrota” aqui é relativo, claro. Hillary continua senadora poderosa de NY e Bill uma referência ineludível de presidente de sucesso, apesar de tudo. Eles mantêm considerável poder de barganha e força no partido. Mas a história recente indica a derrota, mais que da candidatura Hillary, da estratégia que os Clinton canonizaram nos 90: a combinação entre a apropriação de bandeiras republicanas -- rigor fiscal, “transição do welfare para o trabalho” etc. --, as táticas violentas de corpo-a-corpo contra os adversários políticos e um componente populista com algumas bandeiras, defendidas com a consciência de que apelos simbólicos bem manipulados são suficientes para manter feliz uma parte cativa do eleitorado do Partido Democrata (leia-se aqui: negros).
Este último componente sustentou aquele escandaloso mito, o de Bill Clinton como o “primeiro presidente negro” dos EUA -- idéia que talvez seja a principal baixa, o mais ilustre cadáver da campanha destas primárias, em que Hillary concorreu contra Barack Obama como se ela fosse a candidata do Partido Republicano. Os Clinton não esperavam cair assim: no ano da “candidata inevitável” (slogan da campanha de Hillary até aproximadamente jan./08), surpreendidos por um garoto de 40 e poucos anos, senador júnior, ao mesmo tempo de origem humilde e de Harvard e, para piorar, mais brilhante retoricamente que Bill, pondo-o no chinelo na batalha discursiva da campanha. Para completar o baile, ainda por cima, o cara é preto. É surpresa demais para quem traz a história que trazem os Clinton.
Por isso há que se dar tempo para combinem entre si a forma mais elegante de ir admitindo a derrota (de qualquer forma, não interessa a Barack Obama ser coroado semi-oficialmente na semana que antecede a primária da Virgínia Ocidental). Esta derrota não seria difícil de assimilar para um grupo menos ambicioso que os Clinton: caramba, não é vergonha para ninguém perder por aproximadamente 52 x 48 no cômputo geral, mantendo um assento no senado por Nova York e a opção de ser líder da maioria ou qualquer outra coisa que quiser (não a Vice-Presidência na chapa Obama, que não é boa idéia para ninguém). Mas, para os Clinton, é uma dinastia que se desmorona.
Quando se diz aqui “os Clinton”, entenda-se não só Bill e Hillary, mas todo um grupo (cuja estratégia política fica em mãos de James Carville, Mark Penn etc.) que é diretamente responsável por uma campanha eleitoral que foi a maior acumulação de sandices das Américas desde que Parreira inventou o 6-0-4. Primeiro havia que se coroar Hillary antes de começar o jogo, pois era a candidata “inevitável”. Esta tática durou até as primárias de Iowa – estado branquelíssimo -- em que Barack levou, John Edwards ficou em segundo e Hillary em terceiro. Daí houve o breve momento pseudo-feminista da campanha, a rápida virada de Hillary em New Hampshire com o choro emocionado num diner e o tema do I found my voice. Quem conhecia sua trajetória com as bandeiras feministas --- assim como com as sociais, as raciais, as democráticas – sabia que a transcendência delas para Hillary sempre havia sido eminentemente eleitoral. Feministas atrás de feministas atrás de feministas já haviam aderido à campanha de Obama. Em todo caso, o momento morreu ali porque nas primárias seguintes Obama passou a vencer também entre as mulheres, na maioria dos estados.
Daí foi morro abaixo: dos ataques pessoais contra Obama inaugurados na Carolina do Sul aos argumentos usados para desqualificar os estados que votaram nele na Super-terça, definiu-se o que seria o perfil da campanha de Hillary. Era a chamada kitchen-sink strategy, que se poderia traduzir livre e futebolisticamente como abaixo do gogó tudo é canela ou se não sangrou nem fraturou, não é falta. A barragem de ataques foi coisa que não se via em décadas no Partido Democrata. Paralelamente, operava a tática da inevitabilidade: as vitórias do adversário haviam que ser desqualificadas. Não valem vitórias em estados que certamente votarão Republicano no outono (Utah, Idaho), não valem vitórias no Sul de concentração negra (Mississippi, Geórgia, Louisiana), não contam os estados que usam assembléias em vez de cédulas (Maine, Alaska, Kansas). Havia que se pensar no candidato que poderia derrotar McCain nos chamados swing states. Daí Obama passa a vencê-la em vários swing states (Virgínia, Colorado, Wisconsin, Missouri) e a estratégia da desqualificação assinada por Mark Penn e Carville em nome dos Clinton passa a precisar de malabarismos ainda mais mirabolantes. A última tentativa foi grudar em Obama o rótulo de inelegível porque ele continuava perdendo entre o eleitorado hillbilly dos Apalaches.
Enquanto Obama se consolidava como o “candidato da esperança e da mudança”, Clinton se credenciava como a candidatura que dizia duas coisas: 1) “essas mudanças não acontecerão tão facilmente como vocês imaginam”; 2) elections are a full-contact sport [eufemismo para vamos dar porrada mesmo] and if you can't take it, drop out of it. Quando eclode o escândalo fabricado com o pastor Jeremiah Wright e Obama tem seu primeiro momento de baque real, ao invés de abraçar a chance de fazer uma campanha coerente com a história do partido, Hillary embarca na tática do culpado por associação de estirpe republicana: e dá-lhe declarações de que eu teria saído daquela igreja, dá-lhe falsa indignação com ele ficou 20 anos naquela igreja, dá-lhe vídeos estilo política do medo, dá-lhe hesitação calculada em cadeia nacional ao responder a pergunta sobre ela saber ou ou não que Obama sempre foi cristão e nunca muçulmano.
O que é mais promissor nestas primárias é que Obama teve N chances de desenterrar esqueletos dos Clinton para uma campanha negativa e não o fez (e, acredite, como há esqueletos no armário! Comecemos onde? Em 1975?). Algumas dessas possibilidades de adoção da kitchen-sink strategy viraram até enquete no blog. Obama as recusou, como a maioria. Criticou, claro, Clinton em questões legislativas (seu voto pela guerra do Iraque, a demagógica proposta de suspender o imposto da gasolina por um verão e fingir que as petroleiras pagarão a conta), mas só quem falsifica a realidade em nome da preferência eleitoral ou da “ponderação” veria, nestas primárias americanas, as baixarias como responsabilidade das duas campanhas. Não. Foi a estratégia de um clã em declínio, recusada pelo outro lado.
Essa é a gigantesca tarefa do luto com a qual se defrontam hoje os Clinton: não só era um senador júnior; não só deu um baile retórico em Bill; não só chegou a Harvard tendo sido pobre; não só, heresia das heresias, era preto. Ainda por cima ganhou jogando limpo. É muita petulância. Ora, ora, desde 1992 se sabia – supúnhamos – que política não é um jogo que se ganha jogando limpo.
A reversão desta "lei" é o legado da vitória parcial de Obama e a imensidão do choque que os Clinton têm sobre o seu colo. Que caíssem num tiroteio contra a extrema-direita de Rush Limbaugh e Kenneth Starr era um final heróico para o qual estavam preparados. Que tenham caído agindo como Limbaugh, contando com o apoio de Limbaugh (que os preferia como adversários) e tentando manchar um jovem senador negro que veio como candidato da esperança foi, sem dúvida, uma amarga ironia que a História reservou para os Clinton.
Por mais traições que tenham cometido, eles talvez não a mereciam. Mas é fato que ainda têm tempo de lidar com ela dispondo de alguma grandeza.

O Autor é blogueiro (biscoito Fino e Massa)

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