quarta-feira, 28 de novembro de 2007

ANALISES e OPINIÕES

David e Golias: nós e a CVRD

Por Lúcio Flávio Pinto

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra já paralisou por três vezes neste ano o funcionamento da ferrovia de Carajás, pela qual trafega o maior trem de cargas do mundo. Cada dia de paralisação causa um prejuízo de 15 milhões de dólares, no mínimo, à Companhia Vale do Rio Doce.
O bloqueio serve de instrumento para o MST pressionar o governo para cumprir compromissos ou atender reivindicações que nada têm a ver com a CVRD, conforme se pode constatar pela pauta que é apresentada pelos líderes do movimento para a negociação com representantes dos dois níveis da administração pública, a federal e a estadual, quando com eles se reúnem logo depois.
Mas a paralisação dos trens é também uma forma indireta de protestar contra a venda do controle acionário da estatal, em 1997. Não só porque o valor da transação foi baixo, quase vil (quase quatro vezes menos do que o lucro líquido da empresa só no ano passado), como porque significou a renúncia pelo Estado de um poder que não devia ter transferido a uma empresa privada. Há a convicção tácita nessa ofensiva de que a CVRD lucra muito, até demais, enquanto o Estado e o país lucram pouco, quando efetivamente lucram.
Não é sem razão, à sua maneira, que o presidente da Vale, o ex-banqueiro Roger Agnelli, classifica esses atos de meramente ideológicos. Ou, como disse à imprensa logo depois de sair de uma audiência com seu amigo, o presidente Lula, no Palácio do Planalto, em Brasília: “O caso da Vale do Rio Doce é, claramente, uma empresa que é bem sucedida, está gerando muitos resultados, está investindo, reinvestindo. Está num processo de crescimento muito forte. A gente acaba virando de alguma forma, vitrine, vidraça”.
Se a ocupação dos trilhos para impedir a passagem dos 10 trens diários, que escoam minério de Carajás até o porto de embarque para o exterior (60% para China e Japão), se tornar rotineira, a CVRD poderá ajuizar uma ação para compelir o governo federal a garantir a concessão que lhe outorgou, de operar a ferrovia de Carajás por 50 anos, ou cobrar-lhe indenização pelos prejuízos sofridos. Afinal, é obrigação da União zelar pela concessão, enquanto poder concedente, se ela está sendo cumprida regularmente pelo concessionário. E a causa explícita ou direta dos atos é sua inércia, omissão ou incompetência no trato das questões agrárias e fundiárias, que constituem o móvel do MST.
O contencioso devia ser estabelecido exatamente no plano legal para se evitar as derivações e aproveitamentos paralelos, os lances de bastidores, os acertos intramuros. Mas não é assim que as coisas acontecem no Brasil. O presidente da empresa e o presidente da república acertaram suas contas no gabinete, inter pares. O que dizem para a imprensa, mantida lá fora, embora seja o que devia contar, não é o que efetivamente conta.
Da forma como as ocupações são feitas e, mais do que isso, da maneira como são inspiradas ou, às vezes, “sopradas”, o ato pode ser classificado como ideológico por quem sofre suas conseqüências, mas cabe como rebelião primitiva no conceito de quem lida mais amplamente com a análise, sem interesse direto envolvido. Paralisações prolongadas ou amiudadas da linha férrea terão efeito negativo, do contra, mas não conduzirão a nada enquanto fato positivo, modificador, capaz de gerar conseqüências profundas. Até mesmo porque, à distância do teatro de operações, há espaço suficiente para acertos de cúpula, protegido da curiosidade pública.
Se não está na pauta de negociações do MST com os representantes do governo, a Companhia Vale do Rio Doce está dramaticamente na agenda nacional. O sr. Roger Agnelli não pode mai continuar a fazer de conta que a privatização, os lucros excessivos, a falta de correspondência entre os reajustes de preços das commodities internacionais e a falta de compensação ou participação da sociedade nos benefícios dessa renda extra, e tantos outros temas candentes, estão vencidos, superados, são passado. Não são, mesmo que legalmente fossem: estão aí, vivos, escancarados, exigindo novas reflexões e atitudes.
Se a ocupação da ferrovia é mentalidade que guarda correspondência com o início da industrialização, quando os operários destruíam as máquinas, vistas como a causa de sua exploração, o projeto de reestatização da CVRD não é menos problemático – e, provavelmente, não é o mais eficiente caminho a percorrer. Ainda que fosse possível fazer a Vale voltar à sua condição de estatal, é duvidoso imaginar que, com aquele status. ela realmente estaria fazendo significativamente melhor do que a empresa privatizada.
Claro que se deve tentar judicialmente anular a transação de venda, no valor acertado, por ser lesiva aos interesses nacionais e, na letra da lei, vil. Mas a partir daí talvez o melhor seria seguir um novo caminho (ao invés de voltar atrás) até que a CVRD se tornasse uma empresa pública, com capital pulverizado, sob efetivo controle da sociedade brasileira.
Uma empresa que pagasse imposto; que o imposto fosse calculado sobre uma pauta de valores decente (não na boca da mina); que o frete (no caso do mercado asiático mais compensador do que a própria venda de minério) fosse faturado pelo país; que o ganho de preço a partir de um limite de valor se destinasse a fundos de investimento para as regiões de influência da empresa; que os conselhos fossem formados com maior representatividade para não serem meros comitês executivos dos controladores; e assim por diante.
Mas para enfrentar o gigante é preciso ter a sua estatura. Continuamos a combater esse Golias com a presunção de que, sendo David, temos a garantia da intervenção divina nesse novo contencioso não-bíblico. O final da história não pode ser feliz, como não está sendo. Mas a Vale, apesar de toda a sua imensa relações pública, já não pode esconder a nudez desse rei pretensioso: ela própria.

Lúcio Flávio Pinto é Jornalista

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