quinta-feira, 7 de novembro de 2019

‘O cinema renascerá. A Amazônia, não. É vital lutar por ela’, diz Walter Salles


O diretor Walter Salles filma o curta 'Quando a terra treme' Nos quatro anos da tragédia de 
Mariana, diretor de ‘Quando a terra treme’, que o Canal Brasil exibiu na noite de terça-
feira, fala sobre drama na região e o que é urgente no país de hoje
Fátima Sá
Aos 63 anos, diretor de longas como “Central do Brasil”, que disputou os Oscars de melhor filme estrangeiro e atriz (Fernanda Montenegro) em 1999, Salles acompanha as idas e vindas do cinema brasileiro com mais esperança do que temor. E reconhece o impacto da “enorme mutação tecnológica” que vivemos no modo de se fazer e ver cinema. Mais importante do que tudo isso, porém, é “em que mundo queremos viver?”, pondera ele, coprodutor de uma nova ficção sobre a precarização do trabalho e de um documentário sobre a contaminação que garimpos ilegais estão promovendo na Amazônia.
“Quando a terra treme” nasceu de uma proposta do Jia Zhangke para um filme coletivo em que cada diretor retratasse o momento de seu país. E você escolheu filmar a história de uma família atravessada pela tragédia de Mariana. Por que aquele era o retrato do Brasil para você naquele momento?
O rompimento da barragem da Samarco marcou o país. Foi uma tragédia humana e ambiental sem precedentes. Dezenove pessoas mortas, um desaparecido, 600 km de um rio que emudeceu, varrendo vilarejos e afetando centenas de milhares de pessoas. Como em “Em busca da vida” de Jia Zhangke, toda uma humanidade perdeu as suas referências geográficas, mas também afetivas. Daí nasce a ideia de contar a história de uma mãe e seu filho em busca do pai desaparecido. De uma certa forma, a busca do pai e a do país soterrado pela lama se confundem.
E se a proposta viesse hoje, o que filmaria? Como e por quê?
Faria um filme sobre “O dia do fogo”, em que fazendeiros decidiram multiplicar as queimadas na Floresta Amazônica e celebrar o desmanche do Ibama e de outros órgãos de controle ambiental. Herman Hesse dizia que “o homem é o lobo do homem”. “O dia do fogo” parece lhe dar razão.
O que mais encanta e preocupa no Brasil de hoje?
Muitas coisas me encantam: a possibilidade de viver no tempo de Fernanda Montenegro , o que considero um presente e um privilégio. De poder ouvir as vozes de pensadores como Davi Kopenawa, que nos lembram que o homem não está no centro do universo, é apenas uma parte pequena dele. De perceber que jovens de 16 anos não deixaram de sonhar o mundo, nem de pensar que as utopias são necessárias. De ver a força crescente dos movimentos de equidade racial, de perceber que a discussão fundamental sobre distribuição de renda ganha cada vez mais importância no mundo. E de sentir que tanta gente não se curva diante das ameaças de retrocesso político. Essas e outras percepções nos ajudam nos momentos de dúvida e inquietação, que não são poucos.
Você tinha estado em Mariana no fim dos anos 1980 para rodar “O poeta dos vestígios” com Frans Krajcberg (1921-2017). Um filme que trazia muito do fascínio dele pelas cores dos minérios, a terra da região. E voltou para fazer um filme sobre a mesma terra, devastada. O que mais chamou sua atenção?
Krajcberg era um artista visionário. Meu irmão mais jovem e radical, como eu brincava com ele. A sua paixão pela natureza era contagiante. Quando ia para Minas buscar os pigmentos para suas esculturas, só faltava dançar de tanta excitação com os diferentes tons de ocre da terra — e a gente junto com ele. Conviver com Kraj foi talvez a maior lição de vida que recebi. Era um homem que perdeu toda a família no Holocausto, que sobreviveu ao nazismo e depois ao stalinismo, e que se reinventou graças à natureza brasileira. Era incansável na sua defesa, como na celebração da sua extraordinária biodiversidade. Luta e celebração da vida eram indissociáveis para ele. Fico me perguntando o que ele estaria sentindo hoje...
“Quando a terra treme” inspirou um documentário (“Vozes de Paracatu e Bento”), exibido pela Globonews, e o aproximou dos moradores da região. Mantém contato? Que notícias tem deles passados quatro anos da tragédia e menos de um da repetição dela em Brumadinho?
Ao longo das filmagens de “Quando a terra treme”, ficamos próximos de vários desabrigados de Paracatu e Bento Rodrigues. Ouvimos histórias de vida, cada uma mais impactante do que a outra — daí a ideia do documentário, feito de forma coletiva. Vários depoentes perguntaram: “O que garante que esse crime não vai se repetir?” Tanto o curta de ficção quanto o documentário foram exibidos na igreja de Paracatu, a única construção da cidade que sobreviveu ao mar de lama, junto com a escola pública. Várias famílias se reencontraram na exibição, foi um momento especialmente emocionante.
Você começou a filmar antes do fim da Embrafilme, pegou a Retomada, fez “Terra estrangeira”, passou por vários governos, altos, baixos, como vê o audiovisual brasileiro hoje?
“Central do Brasil” e “Terra estrangeira”, codirigido com Daniela Thomas, foram gestados nos anos de silêncio da era Collor, quando toda uma cinematografia deixou de existir. Esses filmes também continham o desejo de falar da questão identitária brasileira, depois dos anos sombrios da ditadura militar. Ao longo da sua história, o cinema brasileiro viveu em equilíbrio instável entre ciclos de alta criatividade, como o do cinema novo, e ciclos de paralisia forçada. Neste momento particularmente difícil, prefiro achar que o cinema renascerá cada vez que um jovem empunhar um celular e filmar algo que ele não poderá deixar de registrar. Karim Aïnouz fez há pouco um longa documental sobre manifestações pela redemocratização nas ruas da Argélia, filmado dessa forma, em um dia e uma noite. E é maravilhoso.
Qual é o maior entrave e a maior vantagem do nosso cinema em 2019?
A vantagem: a diversidade que a Ancine presidida por Manoel Rangel e os pontos de cultura incentivaram em diferentes partes do país. O cinema brasileiro também começou a experimentar com animação, séries infantis, minisséries de ficção. Ao mesmo tempo, núcleos de desenvolvimento de roteiro criaram a possibilidade de discutir dramaturgia e aprimorar histórias. Prefiro achar que esse aprendizado não será perdido. Em parte, graças ao advento das plataformas, que trabalham sem incentivos e necessitam de conteúdo brasileiro. para se enraizar no país.
Scorsese, Coppola, Ken Loach, Fernando Meirelles têm criticado a explosão dos filmes de super-herói. Você vê? Gosta? Detesta? E o que acha dessa discussão?
Almodóvar falou algo na mosca: falta sexualidade naqueles filmes. E eu diria que sobra kryptonita. Isso acaba gerando enredos previsíveis — mas a ideia talvez seja justamente essa, fornecer um entretenimento que declina os mesmos elementos, sempre.
A propósito desse debate, Eduardo Escorel escreveu dia destes um texto na “piauí” em que perguntava: “E nós... que cinema queremos? Quais as condições mínimas necessárias para que esse cinema possa existir?” Pensando nisso, que cinema você queria para o Brasil e quais as condições mínimas para que ele possa existir?
Estamos no meio de uma enorme mutação tecnológica, e isso afeta a maneira como vamos produzir e ver imagens daqui para a frente. O que vai ser do cinema? Essa pergunta não pode ser dissociada de uma questão mais ampla: em que mundo queremos viver? Anunciaram tantas vezes a morte da pintura, da fotografia, do teatro, e essas formas de representação continuam firmes e fortes. Da mesma forma, não acredito na morte do cinema. Desde as pinturas rupestres de Lascaux, o homem desejou deixar um registro de sua história, algo que possa ser dividido com as gerações futuras. O cinema renascerá sempre. Já a Amazônia, não. É por isso que é vital lutar por ela.
Você coproduziu há pouco o filme “Breve miragem de sol”, de Eryk Rocha, em que a história de um homem que vira motorista no Rio serve de partida para pensar a precarização do trabalho. Por que investiu nessa história?
Na Videofilmes, a gente acompanha Eryk Rocha desde o seu primeiro filme de ficção, “Transeunte”. É um diretor que faz um cinema eminentemente sensorial, e “Breve miragem de sol” aprofunda essa sua busca. Como Ruth de Aquino escreveu numa ótima crônica sobre “Sorry we missed you”, o novo filme de Ken Loach, estamos assistindo a uma uberização do mundo. O filme que ganhou Cannes este ano, “Parasita”, de Bong Joon Ho, fala desse mesmo assunto, a precarização do trabalho e os efeitos da crescente concentração de renda. Para se ter uma ideia, “Parasita” fez mais de 11 milhões de espectadores na Coreia do Sul, um país de 51 milhões de habitantes. São temas que tocam mais e mais as pessoas. Só quem não percebeu isso ainda são os economistas de Chicago.
Você também está coproduzindo um documentário do Jorge Bodanzky sobre a Amazônia. O que é e o que ele traz de novo sobre a região num momento em que o mundo todo volta os olhos, preocupados, para lá?
Tanto meu irmão João quanto eu somos fãs da obra do Jorge Bodanzky faz tempo, e esse tema nos pareceu central: os garimpos ilegais na Amazônia estão despejando uma quantidade impensável de mercúrio nas águas de rios que alimentam milhares de pessoas. Como em Minamata, no Japão, começam a aparecer sinais de envenenamento de peixes, afetando a saúde das populações ribeirinhas. É o que Aílton Krenak chama de “banalização da vida, em um mundo onde tudo virou mercadoria — a começar pela natureza”.
Recentemente, você criou a série “Irmãos Freitas”, com o Sergio Machado (diretor do projeto, junto a Aly Muritiba), sobre a relação do pugilista Popó e seu irmão Luis Claudio. O que o atraiu nessa história?
Os filmes ou séries sobre boxe são próximos da tragédia grega: no ringue, há um protagonista e um antagonista, em luta pela sobrevivência e pelo pertencimento. E, em torno deles, há o coro grego, o público. A história de Popó e seu irmão Luis Claudio é rica em acontecimentos que poucos roteiristas poderiam imaginar. É, também, um reflexo de um país em plena mudança, nos anos 1990. Daí surge a ideia da série, que Sergio Machado e Aly Muritiba conduziram com mãos de mestre.
Como estão seus projetos da Arca de Noé e do longa “Ainda estou aqui”, baseado no livro do Marcelo Rubens Paiva? No que você trabalha atualmente?
O desenvolvimento de “Arca de Noé” avança, sob a direção de Sergio Machado, com o cuidado que devemos à Suzana de Moraes ( filha de Vinicius de Moraes, morta em 2015 ), que era a maior incentivadora do projeto. O roteiro de “Ainda estou aqui” está praticamente maduro, depois de três anos de trabalho com Murilo Hauser, roteirista de “A vida invisível”, de Karim Aïnouz. É um filme sobre a recuperação da nossa memória coletiva, em contraste com a perda da memória individual. Um retrato do Brasil dos anos 1970 que pulsa até hoje, e que quero muito filmar.

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