29 anos sem Cazuza
por Jorge Sanglard – Jornalista e pesquisador. Escreve em jornais de Portugal e do Brasil.
Agenor de Miranda Araújo Neto passou como um cometa chamado Cazuza e em seu rastro fica a
certeza de que valeu a pena ser um porta-voz de um tempo difícil. Afiado e afinado com seu tempo,
Cazuza, nascido em 4 de abril de 1958, teria feito 61 anos, se não estivesse se encantado, em 7 de
julho de 1990, há 29 anos, no Rio de Janeiro, deixando flagrante a fragilidade do vigor físico
mostrado no início da carreira musical, ao lado do Barão Vermelho, mas em nenhum momento de
sua luta pela vida abandonou a contundência, a ironia e a mordacidade; batendo fundo e certeiro na
hipocrisia.
Com a cara e a coragem, Cazuza desafiou a tudo e a (quase) todos e graças a sua assumida postura de
exagerado, despertou ora amor, ora ódio, mas nunca a indiferença. Mesmo nas horas mais difíceis e
dramáticas, o cantor e compositor rejeitou a cômoda atitude da condescendência e, apesar de tudo,
fez questão de alternar imperfeições com a maturidade poética e a densidade sonora, traçando um
vigoroso mosaico de nossas misérias pessoais e sociais, sempre esafi(n)ando o coro dos contentes.
Cazuza foi à luta e com uma poética sem meias palavras e uma sonoridade simples, mas eficiente,
deixou uma contribuição importante para a música brasileira contemporânea que, muitas vezes,
teima em não deixar fluir a voz que vem de dentro e insiste em repetir as gastas fórmulas lá de fora.
Enquanto teve forças, Cazuza viveu intensamente e se afirmou como um dos mais criativos músicos
da nova geração da música brasileira. Isto não o isenta de equívocos, pelo contrário, apenas atesta a
sua luta para não se render, nem ao apelo fácil da pasteurização musical, nem à diluição de sua
proposta. Cazuza nunca se cansou de dizer que não queria compromisso com nada, a não ser com a
vida.
Hoje, não vem mais ao caso se Cazuza cantava bem ou mal, importa só que sua obra está aí viva,
Hoje, não vem mais ao caso se Cazuza cantava bem ou mal, importa só que sua obra está aí viva,
contundente e coerente com a sua trajetória na música brasileira.
Em seus discos, Cazuza foi deixando pistas preciosas de suas intenções e engendrou um verdadeiro
quebra-cabeças onde peça por peça se encaixa e aponta o rumo preciso.
Em seu último álbum “Burguesia” o cantor e compositor deixou uma dessas pistas na canção “Cartão
Postal”, onde revela (in)confidências: “Pra que / Sofrer com despedida? / Se quem parte não leva, /
nem o sol nem as trevas / E quem fica não se esquece / Tudo que sonhou, I now / Tudo é tão simples / Que cabe num cartão postal / E se a história é de amor / Não pode acabar mal / O adeus traz a
esperança escondida / Pra que sofrer com despedida? / Se só vai quem chegou, e quem vem vai partir
/ Você sofre, se lamenta, depois vai dormir / Sabe; / Alguém quando parte / É porque outro alguém
vai chegar / Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar / Pra que querer ensinar a vida? / Pra
que sofrer com despedida”.
Cazuza não vai mais se expor, sua música agora vai ocupar todo o espaço deixado pelo cantor e
compositor, que soube dosar a corrosiva carga de seu canto, num momento em que ‘as ilusões estão
todas perdidas’. Afinal, seus heróis morreram todos de overdose, seus inimigos estavam no poder e
seu prazer virou risco de vida.
Mesmo não pretendendo empunhar bandeira alguma, a força de sua canção e o seu recado seguro e
indignado acabaram por empurrar Cazuza para o centro de outras lutas.
Sua canção “Brasil” se tornou um retrato em branco e preto da trágica realidade nacional de seu
tempo, onde Cazuza cobrou alto seu inconformismo: “Brasil / mostra a tua cara / quero ver quem
paga / pra gente ficar assim…”.
Quem apontou o dedo tão firme para a ferida não está mais entre nós para ver quem é que vai pagar
pelo que fizeram desde então com o Brasil. Com a morte de Cazuza, morreu também um pedaço da
indignação brasileira. Morreu um poeta da indignação.
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