sexta-feira, 23 de novembro de 2018

ANÁLISE: NO MANICÔMIO DE BOLSONARO, ATÉ MOURÃO PARECE UMA ILHA DE LUCIDEZ


POR MIGUEL ENRIQUEZ

No manicômio em que se transformou o entorno do presidente eleito, Jair Bolsonaro, com 
declarações intempestivas sobre política externa, propostas destrambelhadas na área econômica 
capitaneada pelo Posto Ipiranga Paulo Guedes, escolha de fundamentalistas de extrema direita para 
postos chaves como os ministérios das Relações Exteriores e da Educação, entre outros, acredite se 
quiser: o general Hamilton Mourão vem despontando como uma rara ilha de lucidez.
A constatação é tão ou mais surpreendente quando se recorda a trajetória recente do vice-presidente, 
seja nos seus últimos anos na ativa do Exército, seja no período eleitoral, propriamente dito.
Em 2015, quando ainda estava à frente do Comando Militar do Sul, em palestra a oficiais da reserva 
Mourão defendeu a possibilidade de uma intervenção militar, no país, além criticar severamente a 
então presidente da República Dilma Roussef e programar uma homenagem ao coronel torturador 
Carlos Alberto Brilhante Ustra, de quem é um grande admirador, sentimento compartilhado, com 
Bolsonaro, por sinal.
O conjunto da obra custou-lhe, além do rótulo de boquirroto, a perda do comando da tropa e a 
transferência para a burocrática Secretaria de Economia e Finanças do Exército.
Em setembro do ano passado, Mourão voltou a preconizar o golpe, o que apressou sua passagem 
para a reserva e possibilitou sua candidatura como vice- de Bolsonaro.
Durante a campanha eleitoral, o general da reserva consolidou sua fama de falastrão, para 
desconforto do próprio Bolsonaro, diga-se, empenhado em amenizar para consumo externo sua 
imagem de troglodita e truculento.
Em sucessivas ocasiões, Mourão soltou o verbo, com referências pejorativas à indolência e 
malandragem dos índios e negros, às famílias dirigidas apenas por mães e avós, definidas como 
“fábricas de elementos desajustados”.
Não faltaram críticas a existência do 13º salário, que chamou de típica jabuticaba brasileira, que 
pesaria em desfavor dos empresários, além de propostas estapafúrdias, como uma nova Constituição 
elaborada por notáveis, e a possibilidade de autogolpe de parte de um futuro governo.
“Quando você vê que o país está indo para uma anomia, anarquia generalizada, que não há mais 
respeito pela autoridade, pode haver um autogolpe por parte do presidente com apoio das Forças 
Armadas”, afirmou em entrevista à GloboNews.
Passadas as eleições, no entanto, à medida que Bolsonaro retomava os disparates de sempre, com a 
milionária contribuição de seu grupo mais próximo (os garotos, Paulo Guedes e o tal Gustavo 
Bebbiano, ex-presidente do PSL, a legenda de ocasião pela qual foi eleito), aqui e ali Mourão foi 
baixando a bola, manifestando alguns rasgos de lucidez.
A entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, publicada nesta sexta feira, 23, é um bom 
exemplo dessa postura. Notoriamente dotado de formação intelectual mais sólida e mais articulado 
do que o capitão Bolsonaro, o general Mourão tratou de contestar e colocar no devido lugar algumas 
das ideias e propostas mais estapafúrdias do futuro presidente, principalmente no que se refere à 
política externa do novo governo, orientada pela subserviência ao presidente americano, Donald 
Trump.
A defesa do pragmatismo, que retoma a política exterior do governo do general Ernesto Geisel (1974-
1979), o penúltimo dos presidentes militares, que evitava o alinhamento automático com os Estados 
Unidos, preconizado hoje por Bolsonaro e pelo chanceler abilolado Ernesto Araújo, é um dos pontos 
altos da entrevista.
Sob Geisel, o Itamaraty ampliou a presença do Brasil na África e foi dos primeiros a reconhecer os 
governos socialistas da Portugal e de Angola, após a derrubada do Salazarismo, em Portugal, além 
de reatar as relações diplomáticas com a China.
“A posição dos EUA é inquestionável”, afirmou Mourão.”É a potência hegemônica, que tem 
capacidade de travar guerra em dois locais diferentes ao mesmo tempo e grande projeção 
tecnológica. É um mercado a ser explorado e uma parceria estratégica.”
Ao mesmo tempo, porém, Mourão, que de bobo não tem nada, não embarca na canoa furada de 
Bolsonaro em relação à China, atualmente um parceiro comercial muito mais importante do que os 
Estados Unidos. “Mas não podemos descuidar dos outros grandes atores da arena internacional”, 
disse. Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China.”
Na verdade, o general parece conhecer melhor os números do comércio exterior do que Bolsonaro, o 
Posto Ipiranga e seus acólitos.
Entre 2010 e 2017, as exportações brasileiras para a China somaram nada menos de US$ 321,20 
bilhões, contra US$ 197,6 bilhões vendidos para os Estados Unidos. Disse Mourão: “ Uma briga 
com a China não é uma boa briga, certo? Tenho certeza absoluta de que nós não vamos brigar —34% 
das nossas exportações são para a China. Não podemos fechar esse caminho pois tem outros loucos 
para chegarem nele.”
O mesmo raciocínio vale para as relações com o Mercosul, subestimado e espezinhado por Guedes, 
um empresário que nunca produziu ou vendeu um prego na vida e fez fortuna com a especulação 
financeira.
A Argentina, com US$ 136,9 bilhões, foi o terceiro maior destino das exportações de produtos 
“made in Brazil”, no mesmo período. Por isso, embora admita que o Mercosul não esteja cumprindo 
a sua função, Mourão opõe-se a proposta de que seja colocado em segundo plano. “Antes de 
pensarmos em extinguir, derrubar, boicotar, temos que fazer os esforços ainda necessários para que 
atinja os seus objetivos”.
Os interesses econômicos também levaram Mourão a detonar a ideia de jerico do futuro presidente 
de transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém.
É óbvio que a questão terá que ser bem pensada. “É uma decisão que não pode ser tomada de 
afogadilho, de orelhada”, afirmou.“Nós temos um relacionamento comercial importante com o 
mundo árabe. E competidores que estão de olho se perdermos essa via de comércio.”
Transformado numa espécie de “grilo falante” do futuro governo, Mourão também investiu contra 
duas bandeiras caras ao bolsonarismo: a negação das mudanças climáticas e a intervenção militar na 
Venezuela.” Não resta dúvida de que existe um aquecimento global”, afirmou. “Não acho que seja 
uma trama marxista.“
Da mesma forma, ele descarta qualquer ação militar contra o governo Maduro.” Não faz parte da 
nossa tradição diplomática a intervenção em assuntos internos de outros países”, lembrou. “O que o 
Brasil pode fazer é participar do esforço conjunto internacional para que a democracia retorne ao 
país, mas com uma pressão diplomática, sem retaliações.”
O pragmatismo de Mourão aparenta ter origem no realismo aprendido em seus mais de 40 anos de 
caserna. “Nós podemos comprar as brigas que podemos vencer”, observou. “As que a gente não 
pode, não é o caso de comprar.”
Diante do inevitável, que é a posse de um presidente eleito com 57,8 milhões de votos, a expectativa 
é de que gente como Mourão mantenha essa posição diferenciada e consiga conter as barbaridades 
esperadas de um governo Bolsonaro.
Essa possibilidade, porém, é vista com ceticismo pelo professor Oliver Stuenkel, coordenador da 
Escola de Ciências Sociais e pelo MBA de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, de 
São Paulo.
“Seria tolice acreditar que o Mourão pode anular/superar os radicais pró Trumpistas, negadores de 
mudanças climáticas e anti-globalistas em torno de Ernesto Araujo, Eduardo Bolsonaro e Olavo de 
Carvalho em todos os assuntos”, afirma Stuenkel. “Ele terá que escolher suas batalhas. Será um 
eterno controle de danos.”
Ou seja, o “grilo falante” vai ter que rebolar para minimizar o desastre que se anuncia.

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