Luis Nassif
Peça 1 – o antipetismo e o antibolsonarismo
Depois do golpe que depôs Dilma Rousseff, o único fator de coesão dos seus articuladores foi o antipetismo. Era a bandeira maior, em nome da qual deixavam-se de lado diferenças em relação aos temas nacionais.
Agora ocorrerá o foco inverso. Com a vitória de Jair Bolsonaro para a presidência da República, há um motivo maior que deverá unir todas as forças democráticas, jogando para segundo plano quizílias pessoais, diferenças em relação a políticas econômicas e políticas públicas em geral: a defesa da democracia.
O grande pacto nacional pela democracia foi firmado nos últimos dias de campanha. Alguns jornais celebraram o fracasso do pacto, pela recusa de Fernando Henrique Cardoso e Ciro Gomes em aderir à candidatura Haddad. Bobagem! O pacto foi firmado de maneira horizontal, juntando petistas, antipetistas, ciristas, ex-ciristas, tucanos tendo em comum a defesa da democracia.
Mesmo com a derrota do candidato Fernando Haddad, a última semana de campanha ficará indelevelmente na mente de todos os que participaram, da mesma maneira que os comícios das diretas e outros momentos cruciais da vida nacional.
Esse movimento eclodiu devido a uma série de ameaças à democracia, às declarações de filhos de Bolsonaro contra o STF (Supremo Tribunal Federal), às ameaças de Bolsonaro no comício da Avenida Paulista, às invasões de universidades por juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais.
Parece ter caído a ficha do STF, da Procuradoria Geral da República, do próprio Alto Comando das Forças Armadas, sobre os riscos à democracia da partidarização das respectivas corporações.
O resultado foi uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais) da PGR, para impedir a repetição das invasões de universidades. A ADPF foi aceita pela Ministra Carmen Lúcia, depois de constatar que grande parte de seus pares, mais a mídia, haviam se insurgido contra as violências praticadas e contra as tentativas da base – juízes e promotores de primeira instância, delegados, policiais em geral – de passar a formular suas próprias leis, seguindo o exemplo do Supremo.
Foi um despertar tardio, posto que não impediu a vitória de Bolsonaro. Mas antes tarde do que nunca, ficam postas na mesa política as condições para o grande pacto nacional, juntando partidos políticos, movimentos sociais, e instituições ameaçadas, como o STF e a própria mídia, em defesa da democracia.
Peça 2 – o formato do pacto
Nos próximos dias, haverá um debate intenso – e infrutífero – sobre os culpados por jogar o país nos braços do atraso.
A mídia insistirá nos erros de Lula e do PT – que, para manter o protagonismo político nas esquerdas, minimizaram o antipetismo.
Há uma enorme conta a ser assumida pela própria mídia, que criou o fantasma da guerra fria, do radicalismo de esquerda e outros factoides que ajudaram a alimentar o exército das trevas. Usou as prerrogativas da mídia, em uma democracia, para ajudar a destruir a democracia. Só no final da campanha se deu conta de que, em um ambiente de exceção, ela fica a reboque.
Nada será cobrado de Fernando Henrique Cardoso, porque a única coisa que teria a oferecer, caso apoiasse Haddad, seria sua impopularidade. Mas a idade ajudou a acentuar as piores características de sua personalidade, um egocentrismo vazio e uma inveja profunda.
A grande questão é a maneira como irá se montar o pacto em defesa da democracia. Haverá fusões de partido, em função das cláusulas de barreira – que impõem condições para partidos terem acesso aos fundos partidários. Mas especialistas não veem condições, no curto prazo, para o aparecimento de um grande partido social democrata. Ou mesmo para uma refundação do PT, único partido que sobreviveu ao cataclismo das eleições, abrindo espaço para aliados de outros partidos.
O pacto se dará em torno de bandeiras comuns, das quais a mais relevante será a defesa da democracia, dos direitos sociais. Não haverá condutores de povos, mas organizadores do pacto, tarefa que exige sabedoria, discernimento, desprendimento e humildade.
Nesse quadro, despontam dois candidatos a liderar a oposição, ambos com perfis diametralmente oposto: Fernando Haddad, se propondo a ser o pacificador; e Ciro Gomes, pretendendo-se o condutor dos povos.
Peça 3 – o papel de Haddad, o conciliador
Nas últimas semanas de campanha, Haddad assumiu uma envergadura pública inédita.
Conhecidos os resultados das eleições, fez um discurso histórico, de improviso, conclamando à união de todos contra as ameaças de arbítrio representadas por Bolsonaro.
Relembrou seus antepassados, em uma lição pedagógica de que o país pelo qual se luta é resultado da construção de gerações que fincaram princípios, depois seguidos pelos filhos que os repassaram para os netos. Por isso, a luta é também por respeito aos nossos antepassados. No fundo, a grande batalha será entre os descendentes daqueles que plantaram sementes civilizatórias, de boa vontade, de respeito ao próximo, contra os bárbaros e os desinformados.
Levantou bandeiras comuns a todos os democratas, ampliou a conclamação para todas as forças da Nação, não apenas para o PT, ofereceu amparo aos que sentem medo. Antes, na fase final da campanha, mostrou desprendimento ao insistir no apoio de Ciro Gomes – sabendo que, em caso de derrota, Ciro seria candidato certo a disputar a liderança dos democratas.
Em suma, comportou-se como um líder nacional.
Peça 3 – Ciro e a estratégia dos conflitos
Já sobre Ciro Gomes recairá uma conta pesada, por ter exibido um personalismo, um egocentrismo incompatível com o que se espera de um grande líder nacional.
E aí entram embates e interesses específicos que ajudaram a enterrar (momentaneamente) os avanços democráticos no país.
Desde o início, o PT pensou em Ciro como seu candidato. Mas pretendia apoiá-lo mantendo o controle do processo político – como vice de Lula, posteriormente como candidato. Tinha esse direito, na condição de único grande partido brasileiro que resistiu ao desmonte político.
De seu lado, Ciro e seu irmão Cid sempre foram refratários a partidos políticos. Seu voluntarismo, ainda que esclarecido, não cabe no figurino de um partido político. Aceitar a proposta do PT significaria se submeter a pactos com a Executiva do partido.
Tudo era uma questão de negociação. Mas elas não aconteceram.
Nem se atribua a vitória de Bolsonaro à ausência de Ciro: os ciristas votaram em peso em Haddad; o grande pacto aconteceu, mesmo com a ausência do líder. A falseta de Ciro foi contra seus próprios apoiadores.
A última semana de campanha foi um momento histórico na vida de todos os democratas, período em que aflorou uma solidariedade do nível dos grandes comícios pelas diretas, com artistas, intelectuais independentes, juristas, youtubers se irmanando em uma ação emocionante contra o arbítrio. Foi um momento inesquecível de solidariedade democrática, marcando o nascimento do novo contra o atraso do governo Bolsonaro e suas milícias.
Depois de um primeiro turno brilhante, Ciro seguiu para Paris abandonando seguidores, artistas e, especialmente, governadores aliados. Não atendeu sequer os telefonemas de governadores aliados. Enquanto isto, no Twitter, sua candidata a vice-presidente, Katia Abreu, dirigia todos seus ataques a Lula e ao PT, com uma falta notável de senso de oportunidade, não entendendo que a grande bandeira, aos olhos de seus seguidores, é a resistência a Bolsonaro, não a disputa por espólios da oposição.
A estratégia de Ciro será dividir a oposição, para cavalgar o antipetismo contra o antibolsonarismo, mostrando notável capacidade de dispersão de energias. O que pretende?
Caso tivesse se empenhado no segundo turno, conseguiria juntar o antipetismo democrático com o petismo agradecido. Teria muito mais condições que Haddad para consolidar o grande pacto nacional pela democracia, por não carregar a herança petista.
Mas, enfim, preferiu o caminho solitário de quem não negocia: comanda. A incapacidade de negociar o impediu de ser presidente e dificultará bastante suas pretensões de liderar a oposição.
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