sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Dom Pedro Casaldáliga: 90 anos de vida, 50 de luta pelos brasileiros pobres.


Com a coragem e a energia de uma onça e a aparência física de um passarinho, o bispo resiste
aos latifundiários e coronéis no interior do país. Ao final do texto, leia também o editorial do
jornal ARA, da Catalunha, e um texto exclusivo de João Pedro Stedile para o aniversário de
Pedro.

Pela solenidade da liturgia eclesiástica ele é Sua Eminência Reverendíssima Dom Pedro Maria Casaldáliga Pla, Bispo Emérito de São Félix do Araguaia. Para os camponeses sem-terra, lavradores e índios com quem convive nos confins do Mato Grosso, é só Pedro. Ou Pedrinho, como dizia uma criança que morava perto de sua casa.“É por causa do meu tamanho”, explicava o religioso franzino no programa Roda Viva de 1988, ao rejeitar o tratamento de “dom”.
Pedro completa noventa anos nesta sexta-feira, dia 16 de fevereiro, e cinquenta desde que trocou a cidadezinha de Balsareny, na Catalunha, onde nasceu, pela inóspita Amazônia brasileira. Com a coragem e a energia de uma onça e a aparência física de um passarinho, há meio século o bispo engajado na Teologia da Libertação resiste às ameaças de morte e luta contra o poder de latifundiários e coronéis no interior do país.
No dia em que foi sagrado bispo pelo papa Paulo VI, em 27 de agosto de 1971, o claretiano Pedro mostrou a que vinha, ao tornar pública sua primeira carta pastoral, cujo título é uma profissão de fé: “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”.
Apesar dos riscos, nunca pensou em sair de São Félix: “Seria uma covardia, uma traição, um anti-testemunho. Imagina um bispo fugir? Isso já seria demais”, disse ele.
Por uma dessas dramáticas casualidades, seu confrade e companheiro de lutas, o padre jesuíta João Bosco Burnier, acabaria pagando com a vida a ousadia de Pedro. Em 1976 ambos foram a uma delegacia de polícia de Ribeirão Cascalheira, em Mato Grosso, após serem informados de que duas mulheres estavam sendo torturadas lá dentro. Confundido com Pedro, padre João Bosco foi assassinado por um policial.
Após a missa de sétimo dia pela alma do religioso morto, em plena ditadura militar, a população da cidade foi em procissão até a delegacia, arrombou as portas e as grades e libertou os presos. No local foi construída uma igreja.
 
A expulsão de Pedro foi pedida inúmeras vezes durante o regime militar. Sem exceção, uma das figuras públicas a quem mais admirava, o arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, saía em sua defesa. Segundo Pedro, era ele “um dos mais importantes defensores de direitos humanos do mundo”.
Pedro teve sua casa revirada pelos militares em busca de “material subversivo”. No documentário Pedro: profeta da esperança, dirigido por Cireneu Kuhn, o bispo conta que, após uma ação de busca da polícia, foi até ao delegado responsável, desafiador, como de costume: “Falei para ele: ‘Vocês esqueceram do livro mais subversivo que eu tenho: Matheus, capítulo 25. Leiam’”.

Pedro viveu a Guerra Civil espanhola durante a infância na Catalunha, momento em que começou a formar suas convicções políticas: “Eu era do lado vermelho, minha família, do outro. Vi muito sangue de perto. Quando criança, escondi padres, freiras e desertores. O tio da minha mãe, com 33 anos, foi assassinado só por ser padre”.
Depois de morar nos subúrbios de Barcelona e Madri, passou três meses na Guiné Equatorial, onde descobriu o chamado “terceiro mundo”. O próximo destino foi o Mato Grosso, onde vive até hoje.
Autor de mais de 20 livros, Pedro foi um dos fundadores do Cimi, Conselho Indigenista Missionário.
Para ele, a igreja deve ser popular: “No povo, a partir do povo, voltado para as lutas e esperanças do povo”. Sua militância se estende por toda a América Latina. Ao apoiar a revolta de Chiapas, no México, em 1994, radicalizou: “Compreendemos o povo desesperado que decide pegar em armas”.
Sobre a Revolução Sandinista, na Nicarágua, disse ser “talvez a revolução mais bonita e a mais cristã de que se tem notícia na história, pelo menos da América Latina”.
São inúmeros os atos de valentia do bispo.
Em um ato de memória à Guerra de Canudos, Pedro subiu ao palanque para fazer um discurso comovente: “O que fez Antonio Conselheiro e seus companheiros, nós devemos fazer. Sem medo. Ocupar a terra. A terra é de Deus e é de todos. Em segundo lugar, se organizar, sem coronéis, sem acumuladores, sem exploradores, sem corruptos. Em terceiro lugar, morar, celebrar Canudos, esta Terra Santa, essa Jerusalém sertaneja”.

No programa Roda Viva de 88, o jornalista Sérgio Rondino, editor de política do Jornal da Tarde, foi encarregado de fazer a pergunta final ao bispo: “Fiquei meio preocupado com a sua última colocação. A propósito da imprensa, o senhor preferiria uma imprensa comprometida com as suas teses ou uma imprensa livre?”.
Para a surpresa do jornalista, Pedro responde imediatamente: “Você tem toda razão em distinguir. Eu preferiria uma imprensa comprometida com as minhas causas. Não com as minhas teses. A causa do índio, do lavrador, da mulher, do menor, desta América Latina, do terceiro mundo, da solidariedade”.
Rondino insiste, incrédulo: “Mas você imporia algum controle à imprensa que não segue as suas causas? É isso que está me preocupando.”
Pedro, mais uma vez sem hesitar: “Sim. Eu acho que uma imprensa que fosse contra a justiça, contra a partilha, contra a solidariedade, contra a igualdade humana, merecia o controle, sem dúvida nenhuma. Senão vamos controlar o que neste mundo? Vamos deixar solto o crime? A injustiça? A repressão? Mesmo assim, haveria muito espaço para opinião”.

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