segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O Jovem Karl Marx e o salto civilizatório que o socialismo trouxe ao mundo


O TRIO FANTÁSTICO: JENNY, KARL E ENGELS. FOTO: DIVULGAÇÃO

Filme de Raoul Peck traz autor de O Capital como "esquerda transante" e é boa propaganda
comunista em tempos de neomacartismo

Cynara Menezes

As cenas de abertura de O Jovem Karl Marx, dirigido pelo haitiano Raoul Peck (Eu Não Sou Seu Negro), trazem camponeses miseráveis recolhendo gravetos no chão para alimentar o fogo em suas casas e assim fugir da fome e do frio. Na época, o governo da província do Reno, onde Marx nasceu, igualara a coleta com o roubo, provocando a indignação do jovem jornalista, que publica uma série de artigos furiosos na Gazeta Renana, para a qual escrevia. “Montesquieu cita dois tipos de corrupção. Um, quando as pessoas não observam as leis. E outro, quando a lei as corrompe”: as imagens dos camponeses sendo massacrados pela polícia são acompanhadas por trechos dos ensaios, recentemente publicados no Brasil pela Boitempo com o título Os Despossuídos.



O futuro autor de O Capital, uma das obras mais importantes do século 20, tinha 24 anos em 1842, quando publicou estes escritos, que tão cedo detonaram a perseguição que sofreu durante quase toda a vida apenas por sair em defesa da classe trabalhadora. No ano seguinte, após ser censurado e preso, Marx é banido da Prússia e parte com a mulher para Paris, de onde também será expulso dois anos depois, com Jenny grávida e com um bebê de colo. São anos de privações e fome para a família, não tão diferentes do que vivia a maioria do povo nas ruas da Europa de então: uma massa de operários sujos, esfarrapados, famintos e trabalhando desde a mais tenra idade até à morte, perfeitamente retratados no filme como uma versão em HD do que Rosa Luxemburgo queria dizer quando falava em “socialismo ou barbárie”.
Era barbárie o que se vivia no mundo “moderno” até que gente como Marx surgiu para apontar as injustiças do capitalismo e encorajar trabalhadores a reivindicar e mesmo compreender que ter direitos não era exclusividade da burguesia. Jornada de oito horas, férias, descanso semanal… Antes de os primeiros socialistas (e anarquistas e comunistas) aparecerem, ninguém nem sonhava com essas “regalias”, como dizia Antonio Candido: “É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo.” O socialismo foi o salto civilizatório.
O povo nas ruas da Europa de então é perfeitamente retratado no filme: uma massa de operários sujos, esfarrapados, famintos e trabalhando desde a mais tenra idade até à morte
A dura realidade dos trabalhadores na revolução industrial foi demonstrada por Friedrich Engels, o parça de Karl, no livro A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de 1845. Rico filho de industrial, Engels foi guiado nos guetos em que viviam os trabalhadores pelas mãos de sua companheira, a operária e ativista irlandesa Mary Burns. E denunciou o que para muitos era considerado normal, quase um destino: crianças trabalhavam desde os 5 anos de idade; quase metade dos operários tinham menos de 18 anos, a maior parte mulheres; elas eram obrigadas a trabalhar grávidas ou levando as crianças pequenas, que eram dopadas com narcóticos para ficarem quietinhas, causando convulsões e mortes. Um verdadeiro paraíso.

CRIANÇAS TRABALHANDO NAS MINAS DE CARVÃO NOS EUA EM 1911. FOTO: LEWIS HINE
“O trabalho das mulheres desagrega completamente a família, porque quando a mulher passa cotidianamente 12 ou 13 horas na fábrica e o homem também trabalha aí ou em outra parte, o que acontece com as crianças? Crescem entregues a si próprias como erva daninha, ou entregam-nas para serem cuidadas fora por um xelim ou xelim e meio por semana, e podemos imaginar como são cuidadas. Por essa razão, se multiplicam de uma maneira alarmante, nos distritos industriais, os acidentes de que as crianças são vitimas por falta de vigilância”, escreve. As mortes de crianças por queimaduras, afogamento e quedas eram frequentes.
“As mulheres voltam à fábrica muitas vezes três ou quatro dias após o parto, deixando o recém-nascido em casa.” Engels cita Lord Ashley, político reformista britânico, que recolheu declarações de algumas operárias: “M.H., de 20 anos, tem duas crianças, a menor delas um bebê, que é cuidado em casa pelo outro, um pouco mais velho; vai para a fábrica de manhã, pouco depois das 5 horas, e volta às 8 horas da tarde. Durante o dia, o leite corre-lhe dos seios ao ponto de os vestidos se molharem. H. W. tem três crianças, sai de casa segunda-feira de manhã às 5 horas e só volta sábado às 7 da tarde. Tem então tantas coisas a fazer para as crianças que não se deita antes das 3 da manhã. Acontece-lhe muitas vezes estar molhada até os ossos pela chuva e trabalhar nesse estado. ‘Os meus seios fizeram-me sofrer horrivelmente e encontrei-me inundada de leite’.”
Crianças trabalhavam desde os 5 anos de idade; mulheres eram obrigadas a trabalhar grávidas ou levando as crianças pequenas, que eram dopadas com narcóticos para ficarem quietinhas, causando convulsões e morte. Um verdadeiro paraíso
No filme, Engels aparece como uma presença luminosa na vida duranga do jovem Marx. Dândi, bon vivant, Friedrich se torna o dileto camarada intelectual e de bebedeiras. Para os vermelhos, é emocionante vê-los trabalhar sobre o manuscrito do Manifesto Comunista. Mas houve quem se chocasse que o filme traga ambos como legítimos exemplares da esquerda sexy, “transante”, com Engels numa insinuada (e consentida) relação a três com a cunhada e cenas fogosas de Marx na cama com a mulher. Como se o pai de sete crianças pudesse ser assexuado ou como se fosse uma blasfêmia mostrá-lo como homem e não como deus –ou ainda como se Marx sempre tivesse sido o velho e barbudo papai noel dos retratos mais conhecidos.
É delicioso ainda assistir na tela grande os embates que teve com o anarquista Proudhon, a quem deixa embatucado com a pergunta: “Você disse que a propriedade é roubo. Quando roubo a propriedade de alguém, de quem estou roubando?” Jenny, de origem aristocrática e quatro anos mais velha que Marx, aparece como uma mulher instruída, à frente do seu tempo e parte fundamental do processo, assim como Mary Burns. Sem dúvida um filme para iniciados, e uma boa propaganda comunista em tempos de neomacartismo.
Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo
O diretor Peck explicita seu engajamento ao utilizar uma canção, ao final, para evidenciar a atualidade da luta da classe trabalhadora encabeçada pelos socialistas no século 19. Que o digam os brasileiros, prestes a voltar aos tempos da revolução industrial graças à “reforma” trabalhista aprovada pelo consórcio PMSD-PSDB. Os aumentos sucessivos do preço do botijão de gás já fizeram os pobres retornarem aos tempos do fogão a lenha; que ninguém se espante se algum dia voltar a ser considerado “roubo” a coleta de gravetos para fazer a comida. Nos Estados Unidos, a direita está tentando reduzir o limite de horas que um adolescente pode trabalhar, uma novidade que tampouco tarda a chegar por aqui. Marx continua necessário.
(O filme está em cartaz nos cinemas, mas pode ser visto também no youtube, não se sabe até quando.)

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