Negri: a casa é um direito e não um favor
Trechos da entrevista de Marcelo Godoy com o pensador italiano Antonio Negri:
Antes de se tornar uma das mais importantes vozes críticas da esquerda mundial, o filósofo
italiano Antonio Negri, de 84 anos, passou quatro anos e meio preso sob a acusação de participar
da morte do líder democrata-cristã Aldo Moro. Eram o fim dos anos 1970, anos de chumbo na
Itália. Saiu da cadeia ao ser eleito deputado. Professor de filosofia do Direito e Teoria do Estado
na Universidade de Pádua e depois na Universidade de Paris VIII e no Collège International de
Philosophie, Negri conhece a realidade brasileira - esteve nessa semana em São Paulo
participando de seminário 1917, o Ano que Abalou o Mundo e do lançamento do livro homônimo,
organizados pela editora Boitempo. Aqui, ele fala sobre Lula, de Antonio Palocci, o futuro do PT
e da esquerda no ano do centenário da revolução russa.
(...) Já que falamos de Lula, o que as bruxas de Macbeth lhe revelam sobre o futuro de Lula?
Não sei se suicídio ou uma tentativa desesperada de luta. Eu penso que Lula seja o maior homem político da América Latina na segunda metade do século 20. Ninguém é comparável a Lula. Foi alguém que conseguiu construir nesse país continente uma força popular necessária aos governos.
Mas e agora?
Não se governa sem Lula. Não se governa sem o que Lula deixou. Ele conseguiu pôr o Brasil na cena mundial, em ruptura com os americanos. Essas são coisas fundamentais que Lula fez e para as quais eu tiro o chapéu. Não creio que o capitalismo brasileiro tenha uma autonomia e uma capacidade inventiva para conseguir manter a herança de realidade popular que Lula trouxe ao Brasil. Destruir sua figura é um absurdo.
É o que está acontecendo?
Sim, eu sei que está acontecendo. Porque a direita não tem cérebro. Está destruindo a única coisa que ela devia salvar.
Mas o problema não é judiciário? O problema não é que Lula recebeu propinas e deve pagar por isso?
Eu não sou contrário a isso (que a Justiça puna os corruptos), desde que isso valha para todos. Se a Justiça bate em alguém é certíssimo, porém deve atingir a todos da mesma maneira. Eu não sei se a relação entre Justiça, jornais e TVs é igual para Lula e para os outros. Esse é um problema que devemos nos pôr se vivêssemos em uma democracia ideal.
A política feita pelo PT de governar o País se exauriu?
Sim. Eu creio que sim. E creio que no Brasil existe uma situação dramática de todos os pontos de vista.
Por que, professor?
Porque não há uma direita que seja capaz de interiorizar o passado desse país, isto é, essa democracia que se quer e não se quer, e que Lula a interpretou e a fez viver de um ponto de vista popular, com a adesão das grandes massas à democracia.
O ex-capitão do Exército e deputado Jair Bolsonaro, um ex-paraquedista, segundo as últimas pesquisas, deve ser bem votado na próxima eleição presidencial. Quais seriam as causas desse fenômeno, o crescimento da extrema-direita?Isso acontece porque, à direita, falta uma posição política capaz de se opor, porque para fazer essa operação, com toda probabilidade, seria necessário aceitar que passamos 20 anos de hegemonia lulista. A direita sabe digerir e engordar, e os bons capitalistas sabem que precisam da força de trabalho. O capitalismo precisa de duas coisas: dar o trabalho e receber do trabalho.
Isso seria reflexo da onda na Europa e nos Estados Unidos?
Provavelmente não. Creio que o fenômeno brasileiro seja diferente. Existe uma queda geral de regimes de esquerda na América Latina, com fenômenos bastante contraditórios, como nos países andinos, como essa grande chaga que é a Venezuela. Mas creio que tudo isso tenha uma espécie de autonomia. A América Latina não sofre seguramente influência da situação europeia, muito fechada em si mesma, no problema da construção europeia e de sua colocação global.
O senhor conhece os programa sociais dos governos petistas. O senhor acha que eles não foram suficientes para criar uma nova identidade para a esquerda?
O governo Lula ficou muito limitado por suas contradição, não há dúvida. Ele errou em duas coisas fundamentais. A primeira é a reforma constitucional (ele se refere à reforma política). Como se pode aceitar uma Constituição na qual a corrupção é necessária para fazer qualquer lei? Esse é um erro extraordinário. A justificação de Lula é: "Estávamos há muito pouco tempo em uma situação democrática para nos dar o luxo de reformar a Constituição". A segunda é o fato de não ter organizado os instrumentos midiáticos e de cultura popular que fossem à altura da estrutura esmagadora da grande produção midiática da burguesia. Esses são dois erros que eu aponto às pessoas do PT. Esses são erros que, infelizmente, devem ser pagos. Não é possível ter uma Constituição desse tipo, na qual cada igreja protestante elege o seu deputado, na qual se pode ter um presidente com 70% dos votos nacionais e não ter uma maioria parlamentar. São coisas que são incompreensíveis para qualquer constitucionalista europeu desde o século 19.
É enlouquecedor?
Sim, é uma loucura. Isso precisava mudar.
A experiência do PT deve ser reformada ou arquivada?
Eu não sei. Sei que na Europa, a corrupção se conhece desde sempre. Sou professor de direito constitucional. Estudei a histórica constitucional de todo o mundo. A corrupção existe em todo o mundo. Nos Estados Unidos, o lobby constituiu-se em poder. Quando me encontro diante da miséria, não porque a quantidade é pequena, mas porque os personagens são míseros - e também os juízes -, vejo que se trata de uma comédia. De uma trágica comédia, cujos personagens são figuras da commedia dell'arte (teatro popular surgido na Itália renascentista). Como professor de direito constitucional, eu me pergunto: Como é possível que alguém, para governar um país, precise ter dinheiro para pagar essa quadrilha de deputados.
Parece que há um paralelo entre o que foi descoberto aqui e o que havia na Itália durante a operação Mãos Limpas?
É profundamente diferente, porque os italianos eram ladrões. Aqui existem marionetes. Na Itália havia aqueles que pagavam os partidos. Os italianos eram ladrões. Aqui são marionetes. E, depois, de fato, consegue-se um apartamento... Ora, por favor, me poupe.
O senhor veio a São Paulo para um seminário sobre os 100 anos da Revolução Russa. O senhor diria que Lenin ainda conta em nossos dias, mas qual Lenin, aquele conspirativo de O que Fazer? ou aquele considerado libertário de Estado e Revolução?
Eu creio que ainda aquele de O que fazer? não seja um Lenin de se jogar fora. A concepção de partido que ele exprime em O que fazer? é uma concepção muito diferente daquele que depois foi o partido bolchevique e os partidos da 3.º Internacional. A concepção que Lenin tinha em O que fazer? era a construção de uma organização sob a base do tipo de fábrica que existia. O partido devia reproduzir a fábrica e os operários esperavam isso. Hoje, evidentemente, Lenin de O que fazer?, se o tomamos do ponto de vista da fábrica ele se tornou nada. Mas se o analisamos do ponto de vista que hoje cada organização política deve respeitar a composição do trabalho, desse ponto de vista também O que Fazer? tem o seu valor. E também a ideia que a liberdade pode existir somente quando o Estado não existe mais, bem essa é uma coisa que eu penso que não podemos deixar somente para os anarquistas, em suma, como desejo. Eu digo desejo, não utopia (risos).
O senhor falou muito em seu livro Multidão...
Agora saiu outro, Assembly (sua nova parceria com o cientista político americano Michael Hardy, Oxford University Press), faz um mês. Ali começo um discurso sobre organização sobre os modelos que nasceram a partir de 2011.
Parece que há um paralelo entre o que foi descoberto aqui e o que havia na Itália durante a Operação Mãos Limpas?
É profundamente diferente, porque os italianos eram ladrões. Aqui existem marionetes. E, depois, de fato, consegue-se um apartamento... Ora, por favor, me poupe.
Em seu livro Multidão o senhor usa os Federalist Papers de James Madison. Como aqueles que desejam construir novas estruturas democráticas devem usar a slições de Madison?
Creio que a coisa absolutamente fundamental em O Federalista, que eu estudei em meu livro O Poder Constituinte, é a teoria do equilíbrio (pesos e contrapesos). Essa é a coisa fundamental. Creio que hoje, a estrutura do constitucionalismo, superando a figura dos partidos em parte, poderia reconquistar os novos contrapoderes. O grande problema da democracia é sempre aquele de entender quem são os sujeitos. Esse é o ensinamento de Madison: quais são os check que permitam equilibrar as coisas. O único medo - terrível medo - é o desequilíbrio. E aqui retornamos ao problema da direita brasileira, que quer reduzir a experiência de Lula a um sonho macbetiano.
Lula foi condenado a 9 anos de prisão...
E eu fui condenado a 28 anos.
O que muda para Lula?
Muda que ele não poderá fazer política. E que, provavelmente, também acabará na prisão.
E para a esquerda?
A esquerda ficará sem um líder essencial e fundamental.
Há pouco tempo um instituto ligado ao PT e constatou que boa parte dos trabalhadores em São Paulo queriam apenas se tornar empresários, ter um negócio...
Sei o que você quer dizer. Creio que a pressão hoje desses ideais do empreendedorismo seja absolutamente falsa, ilusório e mistificador. Vivo em uma região, em Veneza, em que na primeira metade dos anos 1970 aconteceu esse primeiro ataque neoliberal que destruiu fábricas grandes, onde a luta operária era muito forte, como no ABC paulista ou mais. As fábricas foram praticamente destruídas. E se deu um grande impulso ao empreendedorismo individual e com base nisso cresceram enormes sistemas industriais, como Benetton. Onde? A partir de casa. Cada um era empresário em casa. Essa ideia empresarial resistiu até o momento que chegou a crise. Chegou ao ponto que a ilusão dessa nova democracia industrial individualista (se mostrou) ilusória.
E como a esquerda pode enfrentar essa ilusão?
Que é isso, a esquerda nem mesmo compreendeu isso. A grande crise da esquerda não está no fato de que União Soviética acabou ou na globalização. A grande crise da esquerda está no fato de que ela não compreende como mobilizar o trabalho. A grande crise da esquerda está no fato de que crê até mesmo que as pessoas devem se tornar empresárias de si mesmo. Não. É a multidão que se torna empreendedora. É a metrópole que produz. São as relações que produzem. É o fato de reunir cultura e capacidade técnica, grandes escolas, capacidades de comunicação entre as pessoas e modificações dos corpos e de cérebros. E esse é o hoje o problema da esquerda. A esquerda, enquanto não conseguir fazer isso, deverá sempre sofrer a ilusão de que existem indivíduos que, com muito esforço, colocam para trabalhar a mulher a mãe e o filho e conseguem se tornar empresários.
Professor, para concluir, nesta semana Antonio Palocci, que foi ministro da Fazenda de Lula, fez acusações graves em uma carta ao PT. Palocci está na cadeia há um ano. A defesa de Lula diz que ele confessa para buscar benefícios legais. Dizem que o colocaram na cadeia para confessam..
Eu creio que isso é verdade. As pessoas são colocadas na cadeia, em particular em prisão preventiva, para que falem e cedam. Isso me parece que seja uma coisa que qualquer procurador ou juiz sabe que se faz assim. Se faz também na China. Somente nós duvidamos que as coisas sejam diferentes. Eu fui colocado na cadeia sem processo por quatro anos e meio. Quatro anos e meio! Obrigaram-me que eu fosse eleito deputado (pelo Partido Radical Italiano). Saí da prisão por causa disso. Se não, teria ficado oito anos, pois a lei permitia 12 anos de prisão preventiva. Tive sorte de sair porque fui eleito deputado. Entende? Palocci é, segundo me contaram, alguém que podia ser como Sansão, que é preciso cortar-lhe os cabelos para que se torne prisioneiro dos filisteus.
Mas não é possível que mesmo alguém na prisão fale a verdade?
É possível tudo. Mas digo que na prisão não estão as condições melhores para se dizer a verdade. Eu lhe asseguro. Dou minha garantia: quatro anos e meio de cárcere preventivo.
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"POBRETOLOGIA" ESCONDEU A LUTA DE CLASSES
Virgínia Fontes: como o Capital passou a se organizar
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