sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A MORTE DE LEONARD COHEN - O MEU POETA PREDILETO


Vamos deixar de mimimi. Não venha com ''2016, que ano horrível''. Leonard Cohen já havia avisado 
que estava pronto para morrer. Dias depois voltou atrás, falando que iria viver até os 120 anos,
provavelmente depois de ter tomado um puxão de orelha de alguém mais próximo. ''Não, não fala
uma coisa dessas'', alguém deve ter dito. Mas ele sabia. Estava com 82 anos, ergueu uma trajetória
ímpar, cronista da constante consciência da maturidade. Provavelmente olhou para o curto futuro e
falou ''é isso''. Cumpriu seu papel. Encerrou seu ciclo. Hora de acabar. Tudo bem.
Não o envergonhem com emoticons chorosos, lamúrias autoindulgentes, um luto egocêntrico que
parece mais festejar a importância do sofredor do que a obra do morto.
A morte é o único destino definido, o outro momento (após o nascer) que nos define como seres
humanos. É uma determinação biológica, não escolhe vencedores. Todo fã – ou mero ouvinte – de
Leonard Cohen devia saber disso. O fim é inevitável, o que importa acontece antes.



Ouvi-lo dizer que estava ''pronto para morrer'' me causou uma sensação indescritível de respeito.
Não sei se ele sofria de alguma doença terminal ou se estava apenas farto (acontece) de repetir a
rotina interminável entre despertares e adormeceres. Olhou para o rastro que deixou em sua
existência e suspirou contente. Creio que Lou Reed deva ter passado por sensação semelhante.
David Bowie. Prince, embora ainda mais precoce. A sensação de ter deixado sua marca na história
da humanidade só deve ser próxima à da criação de tal legado. Como deve ser compor ''Heroes''?
''Purple Rain''? ''A Perfect Day''? ''Suzanne''? ''Bird on a Wire''? I'm Your Man''?



Cohen, temporão, começou sua carreira fonográfica aos 34 anos, idade que qualquer diretor artístico,
empresário ou produtor desaconselharia um início de carreira na música pop. Acadêmico, romancista
e poeta, já havia publicado vários livros no início dos anos 60 e, depois de desistir das letras
impressas, resolveu abraçar a canção. Associou-se à Factory de Andy Warhol e no mítico 1967 de
Sgt. Pepper's, The Piper at the Gates of Dawn, do primeiro do Velvet Underground, dos Doors e de
Jimi Hendrix, lançou seu disco de estreia, o irretocável Songs of Leonard Cohen, que dizia com seu
timbre essencialmente masculino, embora não másculo, que era hora de começar a amadurecer.
Sua grande contribuição à história do pop é justamente a consciência da maturidade, algo que artistas
contemporâneos começavam a tatear.
Os Beatles, Dylan, The Who, os Kinks, o próprio Velvet Underground e as Mothers of Invention de
Frank Zappa olhavam para um futuro próximo à medida que deixavam a adolescência. Mas Cohen já
vislumbrava os quarenta anos e sua base literária contemplava um futuro em câmera lenta, de timbre
áspero, sonoridade gasta. Cohen dava adeus à eletricidade, à pressa, ao ritmo frenético e ao refrão
inevitável. Cantava como contava, cronista de seu tempo, flertando com o cinema (Robert Altman
nos anos 70) e a TV (Miami Vice nos anos 80, True Detective nos 2010) sem nunca perder o prumo
de sua identidade musical. Sempre cético e cru, pavimentou o caminho para autores modernos do
calibre de Tom Waits, Nick Cave, Patti Smith, Bruce Springsteen, Cat Power, Jeff Buckley, Ben
Harper, Father John Misty, Laura Marling, Elliott Smith, Elvis Costello e PJ Harvey.



Nos anos 80 compôs seu grande hit, ''Hallelujah'', eternizado por vozes tão diferentes quanto Jeff
Buckley, Rufus Wainwright e John Cale, que lhe pagava as contas ao figurar em hits modernos como
Shrek e a versão cinematográfica de Watchmen. ''Hallelujah'' era a ''Imagine'' de Cohen, a versão
mais adocicada dele mesmo que lhe dava liberdade para compor o que quisesse.
E manter-se com o cigarro, uma dose de destilado, o terno bem cortado, a penumbra, dores e amores.
''Primeiro, Manhattan; depois Berlim'' – o tom grave e solene cantava delírios de grandeza, dores de
crescimento, seduções latentes, devaneios arruinados, desilusões amorosas, fins de relacionamentos.
''Vida que segue'', parecia murmurar cúmplice ao ouvinte, entornando outra dose gorda de scotch.
Ao final de sua vida, compôs discos que, vistos em retrospecto, soam como manifestos e epitáfios
simultâneos: Old Ideas, de 2012, e You Want it Darker, lançado há pouco mais de um mês. Discos
que, sabendo do capítulo final de sua biografia, ganham um contexto e uma profundidade a mais,
como o último capítulo de David Bowie, Blackstar.
Não há, no entanto, tristeza, nem lamento, nem arrependimento, nem dor. Velho desde jovem, Cohen
morre tão enfático, decidido e sutil quanto em seus primeiros discos, uma alma quase fantasmagórica
que agora vive para sempre em uma curta (14 discos em quase meio século) mas profunda obra.
Por isso não chore. Não ceda às emoções. Não entregue-se ao pessimismo.
A morte de Leonard Cohen era tão certa quanto foi seu nascimento. Não sofra por um futuro sem ele,
iríamos viver isso.
Aproveite este último capítulo para celebrar sua existência e comemorar a sua própria maturidade.


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