sábado, 10 de setembro de 2016

TRAÍRA SERÁ DESCARTADO EM 31/XII/16


Revista de História
  
“A segunda etapa do golpe é a eliminação do Lula como ator político”, afirma Isabel, em entrevista ao Portal Vermelho, concedida nesta quinta (8). Ela prevê ainda que, sem popularidade e citado em delações da Lava Jato, o presidente Michel Temer pode ser descartado por seus aliados, após a virada do ano. Desta forma, uma eleição indireta poderia levar ao poder alguém que dê ao governo do golpe certa imagem de moralidade e eficiência, com o objetivo de levar adiante o programa de desmonte do Estado brasileiro.

“Esse é um longo processo, que começa ainda durante a eleição de 2014 e alcança seu ápice na decisão do Senado. Mas é um processo, não é assim: aconteceu o impeachment. Ao longo desse tempo, uma espécie de caldo foi se formando, de circunstâncias políticas e jurídicas, que acabou desembocando no afastamento definitivo da presidente. Mas isto não é o fim da linha ainda. A meu ver, ainda se estão formando as circunstâncias de consolidação do golpe. Receio que o que vem por aí ainda nos surpreenderá muito negativamente”, diz.

Ruptura radical


De acordo com ela, o impeachment lançou o país em uma situação “dramática”, e a plataforma anunciada pelo novo governo deixa clara a total ruptura com o projeto eleito pelas urnas. Por outro lado, isso ajuda a desconstruir o discurso dos que tentam igualar políticos e projetos.

“Muita gente dizia: ‘ah, é a mesma coisa’. Mas, mesmo o governo Dilma - com os defeitos que tinha e as tantas concessões feitas aos golpistas - não se compara ao fosso que se abriu entre a realidade que a gente vivia até abril deste ano e a que se desenha a partir das políticas implementadas agora. É uma ruptura radical, inclusive no que diz respeito às práticas repressivas contra as manifestações. O retrocesso atinge todas as áreas, das políticas sociais até coisas consolidadas como a CLT e os recursos destinados pela Constituição de 1988 para saúde e educação”, enumera.

Questionada sobre o que projeta para o próximo período, Isabel – que também é escritora e trabalha como pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa – destacou um aprofundamento da repressão e da investida contra as lideranças de oposição ao impeachment.

“A perseguição ao ex-presidente Lula, com a limitação inclusive dos seus direitos de defesa, tendo por finalidade sua eliminação da disputa política, é evidentemente o objetivo principal desse conjunto de forças que se organizou para perpetrar o golpe. Não só a ele mas a outra lideranças da esquerda. Acho que há uma tendência de fortalecimento da repressão. Todo o aparelho jurídico e policial que está aí trabalhando diuturnamente contra as esquerdas e as lideranças que podem, de alguma forma, deter esse processo, não vai parar enquanto não eliminar o risco de que, nas eleições, sejam eleitas pessoas que representem uma oposição ao projeto que está sendo implementado”, opina.

Temer, carta fora do baralho


Poucos meses após assumir, o presidente Michel Temer amarga baixos índices de aprovação. Nas cinco capitais de maior população do país, a rejeição (Ruim/Péssimo) ou a indiferença (Regular) ao governo variam entre 77% e 82%, conforme mostrou pesquisa Ibope.

Temer apoiou o impeachment com o argumento do combate à corrupção e montou um gabinete mergulhado em escândalos e denúncias de irregularidades; defensor do discurso da austeridade, retira direitos da população, mas fez aprovar o maior déficit primário da história do país, que tem lhe permitido distribuir benesses a aliados.

Diante de uma base de apoio fisiológica, várias divergências têm sido externadas no seio do golpe. O próprio PSDB dispara contra a gestão, faz exigências e ameaça abandonar o barco.

Para Isabel, o vice que virou titular não deve governar por muito tempo. De acordo com ela, as forças por trás do impeachment vão trabalhar – com o apoio da “mídia, tentando atenuar todas as mancadas que ele der” – para mantê-lo no cargo até final do ano, já que, caso saia antes desta data, eleições diretas terão que ser convocadas.

“A minha impressão é que Temer será descartado logo depois de 31 de dezembro”, afirma. Segundo a historiadora, os mesmos expedientes que agora são usados contra Lula e lideranças ligadas ao PT podem servir para afastar o aliado que vai se tornando indesejado.

A ideia é continuar investindo no aparente “combate à corrupção” – “uma cara de ‘vamos moralizar’” –, para, ao mesmo tempo “fazer o resto do serviço, ou seja, terminar o processo de desmonte daquilo que foi construído não apenas nestes últimos 13 anos, mas desde 1988”, crê a pesquisadora.

“Vão descartar esse PMDB que está excessivamente identificado com a corrupção e retomar as rédeas. As forças que estão produzindo esse golpe têm interesse em uma imagem de eficiência, em uma quase legitimidade, que pode ser tentada pela eleição, pelo parlamento, de um [Henrique] Meirelles da vida, ou de alguma figura que tenha mais carisma e popularidade, impondo, depois do 31 de dezembro de 2016, um parlamentarismo que ponha para andar o verdadeiro projeto, que é a destruição dos direitos do povo e dos trabalhadores que estão garantidos pela Constituição de 1988”, projeta.

A emergência da reação

Colocar em prática esses planos, contudo, não deve ser tão fácil como se esperava. Se as ruas andaram silenciosas na reta final do processo de impeachment, desde o afastamento definitivo de Dilma Rousseff estão repletas de gritos de “Fora, Temer”. A frase estampa muros, camisetas. É entoada não só em manifestações organizadas, mas em shows, exposições e familiares festas de formaturas.

Isabel observa que uma parcela da população antes alheia ou até mesmo crítica aos governos petistas, começa agora a se dar conta do que representa a ruptura com aquele projeto. “(...) A empregada doméstica, os trabalhadores que viram seus filhos entrarem nas universidades, a juventude que cresceu durante esse período cheia de direitos... Essa gente começa a perceber que as políticas vão se voltar principalmente contra eles”.

Para ela, depois da pouca reação no curso do impeachment, foi uma surpresa a emergência desse movimento de oposição, que incorpora “um sentimento nacional, que parecia meio amortecido”, diz.

“A gente não sabe que Brasil é esse, que está lá nos grotões, o Brasil dessas pessoas que receberam médico, dentista, pessoas que trabalhavam na roça e viram o filho se formando. A gente não sabe ao certo o impacto que teve sobre esse pessoal a melhora da qualidade de vida, a água que chegou nas casas, a energia elétrica. A reação desse povo à destruição de tudo que foi conquistado talvez seja mais violenta do que os que urdiram esse golpe tenham esperado”, completa.

De acordo com ela, a presença da juventude nas manifestações e as movimentações de Lula pelo país vão, aos poucos, ganhando espaço na disputa de narrativa. “Esses sentimentos se multiplicam de forma mais sutil e talvez mais profunda do que um evento convocado por uma grande rede de televisão, por exemplo, vão formando um substrato, uma consciência que será fundamental para impedir o avanço do atraso”, defende.

“Fora, Temer”, bandeira de unidade
Isabel avalia que esse “acordar” só agora talvez tenha sido motivado pelo fato de que a bandeira “Fora, Temer” pode ser mais forte que a “Volta, Dilma”. Ela ressalta que havia uma divisão grande da esquerda sobre o governo Dilma, em especial no segundo mandato, quando políticas de ajuste rechaçadas nas urnas foram implementadas pela presidenta.

“É mais fácil unir em torno do combate ao golpe e aos usurpadores – muitos deles sofrendo processos jurídicos e criminais, o que já desmoraliza o próprio golpe – do que em torno das posições um tanto ambíguas da Dilma, especialmente no que diz respeito ao arrocho, à política econômica neoliberal que ela, pressionada pela oposição e até por alguns aliados, adotou após a eleição de 2014”, compara.

Excessos do golpe podem fortalecer resistência


A historiadora revela a expectativa de que se fortaleça uma resistência em defesa do Brasil, agregando inclusive setores de centro, “que começam a se dar conta da violência do que está ocorrendo”.

“Talvez o golpe tenha ido longe demais. Alguns que tinham certas expectativas podem ter sido surpreendidos pelo excesso. As propostas relacionadas a direitos adquiridos devem estar chocando inclusive setores que eram contra o governo petista. Minha expectativa é de uma resistência democrática, que envolva não só a esquerda, mas uma parte do centro, uma parcela de liberais conscientes que não querem ver o Brasil mergulhar nesse buraco negro que está se abrindo, com a venda do patrimônio nacional, com a liquidação dos direitos dos trabalhadores, do sistema de saúde e educação, com o estado de anarquia que se seguirá fatalmente a este desmonte”, afirma.

Segundo a cientista política, “as coisas podem se tornar muito dramáticas” em um futuro no qual o Sistema Único de Saúde e a Consolidação das Leis de Trabalho, por exemplo, sejam esfacelados. “Tenho esperança de que o bom senso pode fazer as pessoas se unirem em defesa do Brasil”.

Diretas Já

Indagada sobre o movimento por novas eleições diretas, algo que ganha mais adeptos com o passar dos dias, Isabel defende que bandeiras legítimas, voltadas para a valorização do voto e da participação popular, merecem estímulo.

Mas ponderou sobre a viabilidade da proposta: “Não sei, nas condições objetivas, com tantos casuísmos sendo implementados pelo Parlamento, que tipo de armação eleitoral eles vão promover, no sentido de fazer uma eleição nos moldes que eles querem. A gente já viu que as leis se tornaram elásticas, sendo interpretadas ao sabor das circunstâncias. O próprio impeachment é exemplo claro disso, de como a lei pode ser dobrada para atender aos interesses do grupo que está no poder”.

Por outro lado, ela reconhece que o movimento ganha forças, torce por ele e relembra a primeira campanha pelas Diretas Já. Durante o regime militar, o movimento foi crescendo e, se não conseguiu fazer aprovar a emenda que estabelecia o pleito direto em 1984, teve grande papel na abertura política.

Contra os retrocessos


Para Isabel, para além do “Fora, Temer”, o ideal seria que as manifestações tivessem como foco combater os ataques a direitos que o atual governo promove.

“Há uma série de questões que precisam se constituir como bandeira de luta – é o SUS, a educação gratuita e laica, a questão do petróleo, enfim... e é impressionante como esses temas voltam ao longo de nossa história. São causas que precisam sempre ser defendidas. E é preciso acordar as consciências, para que esses direitos sejam tidos como direitos mesmo. O obscurantismo que se anuncia é de natureza tal que talvez a gente tenha que voltar a antes da revolução francesa e clamar por mais liberdade, igualdade, fraternidade, relembrar quais são os direitos do homem”, cita.

Capital financeiro, arrocho e individualismo

Ao se referir a estes temas, pelos quais, depois de tantas lutas, ainda é preciso brigar, Isabel destaca que, por trás dos ataques de ontem e de hoje, estão forças muito bem estabelecidas. “É o capital financeiro, hoje, dominando o mundo, que se fortaleceu muito e está destruindo a economia europeia e até americana, com a filosofia neoliberal, a política do arrocho, do corte de direitos dos trabalhadores”, aponta.

De acordo com ela, trata-se de um discurso que foi incorporado, inclusive, por parte de forças da esquerda no mundo. “Basta ver aí o [presidente francês, François] Hollande, pessoas que vinham de uma origem mais à esquerda e acabaram comprando, porque parecia científico, o discurso neoliberal. E isso tudo começou com a filosofia pós-moderna, relativista, negação do racionalismo e do humanismo, filosofia que prega que ‘tudo é igual, nada é melhor’ - como no tango. Foi esse pensamento que acabou destruindo determinados valores de humanidade que haviam se consolidado a partir do século 19”, lamenta, citando ainda o que chama de “individualismo nocivo” e “meritocracia irreal”.

Para ela, de certa maneira, a queda do Muro de Berlim e a revisão da leitura do marxismo provocaram uma negação das teorias e de um patrimônio analítico que teria sido fundamental para a formação de consciências jovens no passado, e isto têm um peso para o estado de coisas atual.

“Hoje, você não vê os jovens se reunindo em grupos de leitura, para discutir determinados textos que, antigamente, ajudavam a dar sentido à luta. Hoje, essa luta acaba sendo um pouco errática, como nas manifestações de 2013, justamente pela ausência de uma base de pensamento que dê um norte”, analisa.

“A mídia é o centro de tudo”

Estudiosa da imprensa brasileira, com alguns livros lançados sobre o tema, Isabel destaca que as empresas de comunicações tiveram papel decisivo não só no impeachment, como também têm dominado a política brasileira. “A mídia é o centro de tudo. Ela acossou o Supremo [Tribunal Federal] de forma tão definitiva, que eles não se movem mais se não tiverem o aval da mídia. É algo quase monstruoso”, condena.

Segundo a historiadora, “o esforço de procuradores para aparecerem na televisão e agradarem as empresas de comunicação” é a prova do quanto esse poder se “agigantou” e se tornou “perigoso” para os destinos do país. “Há uma espécie de ditadura midiática. (...) O Brasil virou refém. Não se faz nada sem agradar os verdadeiros donos do país, que são as grandes empresas de mídia”, diz, lamentando que os governos petistas não tenham enfrentado tal situação.

Ditadura policial-jurídico-midiática

Em outro momento da entrevista, ao falar sobre a repressão às manifestações contra Temer, ela voltou a citar o papel da mídia. “Você tira a visão de um jovem e isso não sai na grande imprensa. Isso não aconteceu porque sua tia, que só se informa pela TV, não vai saber que isso aconteceu. É uma articulação muito poderosa. A opinião pública não toma conhecimento. E, com isso, vai se formando uma ditadura policial-jurídico-midiática, com a subordinação do parlamento, cada vez mais obediente a essa articulação”.

Ainda sobre o uso da força para conter os protestos, ela se diz preocupada com o quadro atual. “Na medida em que vemos as imagens, cada vez os policiais que agridem têm menos receio de mostrar a cara. Sabem que estão garantidos pelo governo e pela justiça”, condena, chamando a atenção para o que ela classifica como a criação de uma “casta” dentro do serviço público, alinhada à direita.

“Há aí uma força de direita muito poderosa - com algumas exceções, como o juiz que soltou os jovens [presos antes da manifestação contra Temer no último domingo (4)] -, que é assustadora. São pessoas com salários extraordinários, que formaram uma espécie de casta do serviço público e que defendem seus privilégios com unhas e dentes, inclusive contra os interesses do país”, coloca.

Apesar da preocupação em relação à escalada da repressão, ela avaliou que, contra este horizonte de retrocessos, a saída é “a resistência construída pelas novas forças que estão aí, os futuros donos do Brasil”, afirma, referindo-se à juventude.

“Temos que continuar a trabalhar no aprofundamento da consciência do povo sobre o que está acontecendo de fato no Brasil. Mas agora a bola está com essa misteriosa população que está aparecendo e se manifestando e para a qual os intelectuais podem contribuir com seus conhecimentos e análises mas, principalmente, vibrar e torcer por ela”, conclui. 

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