segunda-feira, 30 de março de 2015

O marketismo vulgar (e fracassado) do Governo Dilma



 Por Miguel do Rosário 

A entrevista do professor Wanderley para o Valor está, como sempre, instigante. E talvez ainda
mais do que padrão de suas entrevistas em vista do forte tensionamento político vivido hoje no país.
Como se trata de uma entrevista longa, acho melhor eu não acrescentar muitos comentários agora, 
para o post não ficar inviavelmente extenso.
Peço aos leitores que dêem sua opinião na caixa de comentários, discordando, concordando ou 
complementando a opinião do professor, que é um grande teórico e um grande apaixonado pela 
democracia e, portanto, sabe que o valor de uma análise e de uma opinião reside em sua capacidade 
de produzir um debate inteligente e produtivo.
Ao falar sobre marketing político, Wanderley diz:
“Esses marqueteiros não sabem nada. É um absurdo que tenham assento no conselho político da 
Presidência. João Santana fez uma campanha cara e ruim que quase derrotou Dilma. Coisa de 
mau gosto, mórbida, com aquelas pessoas no caminhão se vendo no passado. Dilma ganhou por 
uma diferença muito pequena em grande parte por causa da militância que foi às ruas nos 
últimos dias assustada com a chance de derrota.”
A política foi desprezada, em nome de um marketismo vulgar e covarde, submisso à lógica de uma 
mídia que não tem mais prestígio a não ser junto aos setores mais autoritários e mais reacionários do 
Estado e da sociedade.
A esquerda jamais recuperará a sua “capacidade de liderar” se não souber restabelecer essa conexão 
política entre o poder público e a mobilização popular. Aliás, vale lembrar que a covardia e apatia 
política do governo afeta não apenas a relação com a sociedade, mas também com o próprio 
parlamento, encarecendo o apoio de deputados e senadores a um executivo cuja aprovação social se 
esboroa rapidamente. Isso foi admitido pelo próprio Eduardo Cunha, O achacador da Câmara 
Federal, em entrevista dada ao Globo neste final de semana:
Globo: O sehor diria que o governo está hoje em colapso político e gerencial? [perguntinha 
golpista até a raíz do cabelo, mas tudo bem].
Achacador Cunha: Não diria que ele está em colapso gerencial. Eu diria que ele está em inércia 
de comunicação Ele pode até estar gerenciando, mas não comunica o que está fazendo. Eu acho 
que o governo passa a sensação de estar parado. 

Vamos à entrevista:

A esquerda tem criticado o caráter elitista das manifestações. Esta crítica não ignora a capacidade de a classe média que sai às ruas galvanizar uma insatisfação que a extrapola?
Wanderley Guilherme dos Santos: As manifestações do dia 15 são resultado de circunstâncias contemporâneas e desaguadoro de alguns condicionantes que vêm se acumulando. Divirjo profundamente da opinião majoritária da esquerda. Está equivocada no diagnóstico, na interpretação do passado recente e nas suas propostas de curto prazo. A começar pelo fato anedótico de reclamar da direita por estar ela se comportando como direita sem procurar entender o que aconteceu no passado recente que levou a direita a ser capaz de uma mobilização como em décadas não havia. Supondo que essas manifestações tenham sido apenas de direita – e não o foram – o que me importa é que a direita está liderando o centro. Esse é o fenômeno importante.
Isso não acontece desde quando?
Wanderley Guilherme: Com sucesso, isso não acontece desde 1964. Depois da ditadura a direita ficou isolada do centro e, por isso, não conseguia colocar ninguém na rua. O movimento ‘Cansei’, por exemplo, foi patético. Agora não. É preciso reconhecer que as convocatórias da direita têm tido muito mais sucesso do que as da esquerda.
Por que a esquerda perdeu essa capacidade mobilizar?
Wanderley Guillherme: A partir da eleição de Lula a esquerda vem cometendo dois sérios erros, de diagnóstico e perspectiva. Um deles foi a bandeira da reforma política, o outro é a visão sobre o PMDB. Assim que foi aprovada a Constituição de 1988, os conservadores começaram a combatê-la. Por acidente de percurso, vários pontos supunham que o resultado da Constituição seria o parlamentarismo e o voto distrital. Esta foi bandeira dos conservadores na constituinte. Por trás do trabalho de desmoraliação visando a revisão de 1993, havia não apenas a concepção de regresso dos conservadores, como também a manifestação do preconceito contra a política e a má qualidade da representação. Veio daí o discurso da reforma como se os códigos eleitorais filtrassem caráter. Esse sentimento antipolítico que desde sempre é da classe média conservadora foi absorvido pelo PT no seu nascedouro. O PT nasce com uma visão muito antipolítica, contra as instituições representativas.
E no que a adesão do PT à bandeira da reforma política levou esse povo todo para a rua?
Wanderley Guilherme: Essa concepção de que há alguma coisa errada na política que tem que ser resolvida por uma reforma foi alardeada pelo PT sobretudo depois da ação penal 470. Como escapismo. Incorreu no erro ao cubo de defender uma assembleia constituinte exclusiva. De onde é que eles imaginam que viriam os eleitores e os candidatos dessa constituinte? Vão buscar eleitores na Suécia e constituintes na Islândia? Essa bandeira acabou entrando na cultura política do país. De tal modo que tanto nas passeatas do dia 13 quanto naquelas do dia 15 todos se diziam favoráveis a uma reforma política sem fazer ideia do que significa isso. Isso intoxicou a opinião do público educado com a ideia falaciosa e ilusionista de que os problemas existentes no país são consequência automática das instituições políticas. Isso é falso e fraudulento. Leva as pessoas a não terem mais respeito nem se sentirem mais responsáveis pelas estruturas existentes.
O PT foi engolido pelo seu próprio discurso de reforma das instituições?
Wanderley Guilherme:Sim, foi engolido pelo discurso conservador, dada sua origem comprometida com a ideologia da classe média ascendente. Não quero ser reducionista, mas o fato de ter surgido dentro de uma ditadura, quando a política era um mal, contribuiu para o PT ter uma concepção absolutamente virgem, angelical e juvenil de quem nunca fez política na vida.
É nesse sentido que o PT e o PSDB viraram as duas metades de uma mesma laranja?
Wanderley Guilherme: Talvez. para o PSDB, como para a UDN, a política é um mal, você faz porque não tem outro jeito. O que não quer dizer que as lideranças sejam autoritárias, mas a base de sustentação eleitoral do conservadorismo topa o autoritarismo numa boa. Pode enjoar, sobretudo se sofrer, mas topa. Isto contribuiu para um ruptura de crença e de respeitabilidade entre a opinião pública de todos os matizes e as instituições. O PT colaborou para isso insistentemente para isso durante a campanha e agora. Chegamos ao ponto em que, depois de todo esse desgaste, o poder causal das instituições está erodindo. O grau de indeterminação está muito elevado. Não se sabe mais se as instituições vão produzir o que se espera delas.
E o sr. acredita que foi a expectativa gerada em torno da reforma política que gerou isso?
Wanderley Guilherme: São expectativas que fazem com que qualquer coisa que aconteça seja insuficiente. Não se sabe como o Congresso vai se comportar daqui para frente. O poder causal da medida provisória, por exemplo, não está funcionando. Não acredito que quem organiza essa esterilização do Executivo a partir do Legislativo tem condições de fazer com que a instituição funcione com poder causal.
Mas no Judiciário esse poder causal não está funcionando?
Wanderley Guilherme: No Judiciário também não se sabe muito bem o que vai acontecer daqui para frente. Não dá para julgar o comportamento que os ministros terão a partir de como se comportaram no passado. Eles mudam de opinião. As instituições são preditivas. Mas nem isso está acontecendo.
Por que todos os partidos aderem de maneira tão inequívoca ao discurso da reforma política?
Wanderley Guilherme: Por que assim eles se safam. Podem dizer ‘o problema não sou eu é a legislação eleitoral’. É um discurso ótimo para a elite política. É inominável do ponto de vista do amadurecimento político de um povo quando uma liderança promove esse tipo de propaganda sistemática. Eles, no fundo, sabem que não é isso. Não é por causa do sistema eleitoral que os deputados do PT até agora indiciados receberam propina por conta da atitude benevolente das empreiteiras que os queriam premiar com facilidades para a campanha eleitoral. As empreiteiras e os quadros da Petrobras não roubaram para fazer benesses. Corromperam a classe política para roubar. O que é muito diferente.
O sr. disse que o PT também se equivocou em relação ao PMDB, mas o partido não tem sido um entrave?
Wanderley Guilherme:O PMDB foi, mais uma vez, na esteira desse preconceito antipolítico, apontado como o mal do parlamento, por fisiológico e clientelista. Isso nunca foi exclusivo do maior partido de centro do país. Essa antipatia foi absorvida pelo PT ao ponto de convidar o PMDB na vice e montar uma estratégia para sua liquidação. O Executivo está recebendo o que plantou tanto na reforma política, que está sendo liderada pelo PMDB quanto no resto. Que seja bonito ou feio é o que temos. E o que você tem que fazer é liderar o PMDB e domesticá-lo para que o partido se comporte de acordo com sua pauta de valores e não aliená-lo e colocá-lo no campo oposto. O PT não aguenta o rojão nem é tão puro assim. Como também não o são seus aliados PP e PR que continuam na base o governo. Aliás, o governo continua cheio de bandidos como todo mundo sabe.
Essa fixação no PMDB oculta a falência do PT em lidar com a corrupção?
Wanderley Guilherme: Do PT e da sociedade. Os problemas burocráticos que há no país se resolvem com despachantes. O despachante é o Fernando Baiano da classe média. É ele quem é o intermediário dos ilícitos e dos bodes colocados pela burocracia para serem resolvidos. A população não vê isso como corrupção. A passeata de 15 de março era de profissionais liberais, médicos, advogados, dentistas, desenhistas, eletricistas. Todos sonegadores. Não é uma corrupção diferente daquela da empreiteira. É parte de uma cultura política atrasada, mas ninguém está livre dela.
Mas não há uma diferença de escala?
Wanderley Guilherme: Essas relações espúrias foram ficando mais complexas. Na Primeira República o ilícito era interferir para nomear o juiz de paz, a professora e o delegado. Depois veio o empreguismo e a política da caixa d’água. Com o Plano de Metas de JK abriu-se possibilidade para um tipo de ilícito de muito maior porte nas obras públicas. Não tenho a menor dúvida de que muitas obras custaram mais do que deviam . As oportunidades aumentaram consideravelmente. E isso continuou acontecendo durante a ditadura com suas obras faraônicas. Chegamos aos últimos 12 anos com taxas de desenvolvimento bastante evidentes, com grandes obras de todo tipo, hidrelétricas, pré-sal.
Dito assim, a corrupção não parece inevitável?
Wanderley Guilherme: Não estou dizendo que esse é um problema do capitalismo, mas da escassez. Há tribos que roubam mulheres. Na União Soviética as estudantes universitárias se prostituíam por uma calça jeans. Onde há um bem escasso há problemas de comportamento fora das normas vigentes. Não estou dizendo que seja inevitável, tem que prevenir e punir.
Mas não é isso que o Judiciário está demonstrando?
Wanderley Guilherme: Sem o Ministério Público o que aconteceu na Petrobras não teria como ser descoberto. O que eu reclamo dos procuradores é que eles existem desde a Constituição de 1988 com plenos poderes, mas foram negligentes antes de o PT chegar ao poder.
O procurador-geral que não era escolhido entre os mais votados influenciou nisso?
Wanderley Guilherme: Era o período do [Geraldo] Brindeiro, que engavetava tudo, mas eles têm autonomia. Não foi o [Rodrigo] Janot quem fez isso, foram os procuradores com um juiz. Janot só soube depois. Deixaram se avolumar um problema que vem de longe. É o procurador que é o vigia desse negócio, não é o sistema eleitoral.
Não foi uma sociedade mais vigilante que produziu esse MP mais ativo?
Wanderley Guillherme: Acho que temos sido, na verdade, lenientes. Se você ficar um mês numa repartição você sabe onde tem problema. Qualquer chefe de seção da Petrobras sabia da corrupção. É impossível não saber, mas é preciso não transformar isso na epistemologia do crime. Saber não implica cumplicidade. O problema não é saber ou não saber. O problema é o fato. A cultura política brasileira é muito a favor da delação e despreza o delator. Ninguém faz nada pela absoluta inconsequência da denúncia.
É aí que tem uma insuficiência institucional, na proteção de quem delata?
Wanderley Guilherme: Veja que isso não tem nada a ver com o sistema eleitoral. As ouvidorias ainda são muito fajutas. Nos Estados Unidos o governo chega até a pagar a quem denuncia certos crimes. Não protegemos os bons funcionários dos ladrões. Todo o sistema produtivo, do privado ao estatal, tem problemas. Agora não tenho dúvidas de que, quando começou o problema da Petrobras o Executivo tinha que ter ampliado a investigação para todo o governo.
Mas isso não comprometeria o projeto de poder do PT?
Wanderley Guilherme: Não sei, mas o partido não seria o sócio disso que está acontecendo. Não tem obra pública no Brasil que não esteja contaminada. Não sei quem são os Pedro Barusco e Paulo Roberto Costa de outras instituições mas não tenho dúvida de que existem. Ficaria felicíssimo se descobrissem. O banquete de escândalos servidos diariamente à direita não justifica nenhuma solidariedade ou hesitação da esquerda em relação a bandidos.
Sem mudar a cultura das corporações uma reforma do financiamento de campanha, por exemplo, vira letra morta?
Wanderley Guilherme: As pessoas esquecem que toda legislação positiva indica, subliminarmente, os meios de transgredi-la. a questão maior está em mecanismos de prevenção e de punição, os quais, por sua vez, também indicarão subliminarmente os meios. Ou seja, independente do valor abstrato das leis, a vigilância e repressão de ilícitos devem recair sobre seus operadores. Agora tem um problema aí que é o do marketing eleitoral. Não dá mais para aceitar uma campanha sem teto de gastos.
Um teto implica também em mudança de formato…
Wanderley Guilherme: Não precisa fazer show. Esses marqueteiros não sabem nada. É um absurdo que tenham assento no conselho político da Presidência. João Santana fez uma campanha cara e ruim que quase derrotou Dilma. Coisa de mau gosto, mórbida, com aquelas pessoas no caminhão se vendo no passado. Dilma ganhou por uma diferença muito pequena em grande parte por causa da militância que foi às ruas nos últimos dias assustada com a chance de derrota.
O sr. aponta uma falta de liderança na esquerda para reverter esse rumo tomado pelo governo. Lula não é mais uma liderança?
Wanderley Guilherme: Não. Ele entrou nesse desgaste geral. Em parte por culpa dele que fica falando o tempo todo que a política não vale nada. O que não quer dizer que tudo esteja perdido, mas ele perdeu sua capacidade de liderança. Isso tem que ficar claro. Suas convocatórias já não estão sendo atendidas como eram. Permitiu que o centro passasse a ser liderado pela direita. A esquerda está sem liderança. Não se pode deixar de reconhecer a surpresa que foi o início de governo. Uma completa reformulação do que foi dito até o último comício. Foi um choque.
Foi esse choque que liquidou a capacidade de a esquerda liderar?
Wanderley Guilherme: Sem dúvida. Acho que a presidente não tem mais liderança. Houve uma ruptura muito grande entre a base social da esquerda e sua liderança. Ruptura essa que tenho dúvidas de que consiga recuperar. Não adianta o que a presidente faça que a direita não vai ficar quieta. Gostou do jogo, como se diz no futebol.
O jogo não é derrubá-la?
Wanderley Guilherme:Só se algo de extraordinário acontecer. Sem o PMDB não se derruba ninguém. O partido é a fiança do não-impeachment.
 Com uma esquerda acéfala seu ciclo caminha para o fim?
Wanderley Guilherme: Não sei. Essas lideranças atuais acredito que sim. O que não significa que não haja perspectiva para a esquerda. O PT pode cansar de sangrar e exigir mudanças na política econômica e na correlação de forças do governo. Pode ser movido pelo instinto de sobrevivência mas vai depender da luta interna. Se o partido se consumir nela, que é irrelevante, não terá condições de reagir.
O sr. classificou o mensalão de julgamento de exceção, depois dele não haveria outro igual. O petrolão não é um desdobramento?
Wanderley Guilherme: O mensalão, de fato, foi um processo de caixa 2 com muito desvios. Agora é roubo com formação de cartel, aditivo e licitação manipulada. Para fazer isso, eles têm que comprar político. O caixa 2 não é compra de político. Lá houve condenações em prova e teses absurdas como a do domínio do fato ou a do [Carlos] Ayres Brito que o réu tem que provar que não sabia. Agora não precisa mais violentar a lei.
O que pode vir de um país em que o único poder com causalidade é o Judiciário?
Wanderley Guilherme: Espero que o sistema se recomponha a partir do Executivo, colocando criminoso para fora do governo. Isso não compromete as instituições. Por outro lado, não vejo a oposição ir além da batucada. Não tem projeto porque o governo está executando o programa deles. O que é o PSDB hoje? Um túnel no fim da luz.
Se o PSDB não tem capacidade de canalizar insatisfações como a do dia 15 quem o fará?
Wanderley Guilherme: É hora de aparecer um oportunista.
Joaquim Barbosa?
Wanderley Guilherme: Pode ser. Um oportunista capaz de galvanizar direita e esquerda. Acho que não é jogo para Marina. Esse negócio todo colocou todo mundo sub judice. É uma situação favorável ao aparecimento de oportunistas competitivos. Se serão capazes de levar essa insatisfação a algum lugar é outra questão mas eles vão aparecer e confundir o quadro da sucessão. Não tenho dúvidas de que a sucessão não vai ser só PT e PSDB.
A conjuntura é comparável àquela que se sucedeu à operação ‘Mãos Limpas’ na Itália que deu lugar a Silvio Berlusconi?
Wanderley Guiherme: Não conheço nem gosto de comparar. São as forças telúricas de nossa política que definem. Ninguém faz nada porque a Itália fez. Nosso problema é complicado porque a liderança da oposição é fraca. Os conservadores atuais são medíocres e agressivos no vocabulário. A esquerda também é, mas para quem precisa competir e mostrar a diferença tem que ter mais. As pessoas podem ter um papel causal que as instituições perderam. É o momento da virtu.
E o sr. distingue lideranças virtuosas nesse processo?
Wanderley Guilherme: Não. Todo mundo está perdendo capital aceleradamente.
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