terça-feira, 10 de março de 2015

Kiev, um ano depois


A população ucraniana dribla massivamente o recrutamento militar e vive uma situação econômica catastrófica.

Rafael Poch, do La Vanguardia

Faz um ano do massacre de Kiev, com dezenas de mortos, tanto de manifestantes como de policiais. O massacre foi decisivo para derrotar um governo ucraniano reticente ao pleno alinhamento à Otan e à União Europeia e substituí-lo por outro plenamente aberto a isso.
O massacre não foi investigado oficialmente. As novas autoridades de Kiev foram parte de uma farsa. As potências ocidentais que apadrinharam o movimento não mostraram interesse algum numa investigação independente.
Centúria celestial
As vítimas foram declaradas “Centúria celestial” e usadas para glorificar a mudança de regime como produto de um feito popular. Um ano depois, o canal Arte oferece uma vasta recompilação de imagens que ilustra até que ponto o movimento foi violento.
http://www.arte.tv/guide/de/057960-000/kiew-brennt/?vid=057960-000_PLUS7-D
O documento conclui com imagens de manifestantes mortos, sem oferecer imagens de policiais mortos. Aqui está o nome de alguns dos policiais mortos, concretamente onze deles, que eu mesmo recompilei em um ato realizado em Odessa: Sergei Spichak, Vasili Bulitko, Andrei Fedyukin, Sergei Tsengun, Dmitri Vlasenko, Vladimir Evtushok, Vitali Goncharov, Aleksei Ivanienko, Maksim Tretiak, Piotr Savitski, Iván Tepliuk. Todos eles mortos a tiros. A lista é incompleta. Os meios de comunicação ucranianos nunca mencionaram esses nomes, e os do resto dos policiais e adversários de Maidan mortos naqueles dias em Kiev, que poderiam ser duas dezenas ou mais, na lista das 98 vítimas daquelas jornadas.
Preso em uma guerra civil que precisa de mitologias patrióticas, o novo regime instaurou a “Ordem da Centúria Celestial”, que reconhece a “coragem cívica e o patriotismo”. Algumas ruas foram batizadas com esse nome e o novo presidente e sétima fortuna da Ucrânia, Petro Poroshenko, declarou o 20 de fevereiro como “Dia dos cem heróis celestes” para comemorar a “Revolução da Dignidade”.
Conforme expliquei em novembro, o único estudo acadêmico sobre aquele massacre, obra do professor Ivan Katchanovski, da School of Political Studies, Universidade de Otawa, conclui o seguinte:
"As evidências indicam que uma aliança de elementos da oposição e da extrema-direita esteve implicada no massacre de manifestantes e de policiais, enquanto que a implicação das unidades especiais da polícia na morte de alguns manifestantes não pode ser excluída.
O novo governo que chegou ao poder, em grande parte como resultado do massacre, falsificou a investigação, enquanto que os meios de comunicação indicam que a extrema-direita desempenhou um papel chave na queda violenta do governo da Ucrânia".
Um ano mais tarde, a BBC, um dos canais importantes para a propaganda das guerras e mudanças de regime inspirados por potências ocidentais, reconsiderou sua cobertura.
Muito pouco e muito tarde para reivindicar uma mínima decência informativa.


Um risco conhecido
Obviamente, se tudo isso tivesse acontecido com os vetores e os cenários invertidos – um governo favorável aos interesses ocidentais, como México ou Canadá, derrotado sob uma tutela chinesa e russa, com políticos russos, chineses e venezuelanos de primeira linha distribuindo bolinhos entre os manifestantes e expressando sua solidariedade a eles –, não seria celebrado como um progresso democrático, mas sim como um escandaloso e sangrento golpe de Estado, intolerável ingerência estrangeira, terrorismo e tudo o mais.
A guerra que resultou disso tudo, como consequência de vinte anos de política exterior e de segurança europeia sem Rússia e contra Rússia, se apresenta como resultado de um “expansionismo russo”.
A fragilidade da Ucrânia era assunto evidente para qualquer observador há tempos. Em um texto publicado por este jornal em 22 de dezembro de 1991, no qual se mencionava que a nova Ucrânia independente continha onze milhões de russos, dizia-se o seguinte: Essa realidade demográfica existe e está geograficamente concentrada no sudeste da Ucrânia, como uma grande Eslavônia latente. Nem o previsível aprofundamento da crise econômica e nem os mal-entendidos militares ou comerciais, nem a debilidade da cultura democrática entre os dirigentes de ambos os estados nos impedem de descartar os riscos”. Quem diria então que o principal risco derivaria do expansionismo político militar da euro-atlântica na região, com uma OTAN não dissolvida, mas ampliada com bases e soldados na Romênia, Bulgária, Turquia, Países bálticos e Polônia, assim como relações militares e bases em grande parte das repúblicas ex-soviéticas, para citar apenas o cinturão de ferro em torno da Rússia.
A fragilidade de Minsk
O segundo acordo de Minsk, recém-alcançado este mês, foi resultado direto dos êxitos militares dos rebeldes pró-russos. Esse acordo tem como principal problema o fato de ter deixado fora muitas forças hostis a qualquer diálogo realista. Os Estados Unidos não estão. Temem que, se França e Alemanha chegarem a um modus vivendi com a Rússia, sua liderança na política exterior e de segurança europeia vá por água abaixo. Preferem mais guerra. Criar um Afeganistão na Europa é preferível a perder o controle de sua política exterior e de segurança. É o cálculo do Império do caos, o mesmo que incendiou o Oriente Médio. Por esse lado, devemos nos preparar para o pior.
No interior da Europa, Polônia, Estônia, Letônia e Lituânia são claramente hostis ao acordo que consideram concessão. Donald Tusk, o polaco germanófilo que preside o Conselho Europeu, expressa abertamente seu ceticismo. O governo de Kiev está dividido entre grupos armados de ultradireita que proclamaram sua hostilidade ao acordo, o primeiro-ministro Yatseniuk, que se alinha por complexo às posições de Washington, e o presidente Poroshenko, que surfa entre diversos patrões, com especial atenção à Alemanha.
Se o assunto é assim tão frágil, é ainda mais preocupante a ambiguidade da única esperança existente: o senso de comunidade de Alemanha e França. O que esperar de gente como Merkel e Hollande, que já demonstraram seu trabalho na catastrófica gestão da crise do euro? Merkel explicou em Munique que a razão de ser do acordo de Minsk e de sua oposição a não armar a Ucrânia é que “militarmente, não se pode vencer a Rússia”. “Essa é a amarga realidade”, disse respondendo a um senador americano. Quando perguntaram em Munique para sua inconsistente ministra da defesa, Ursula von der Layen, por que se apoia militarmente os curdos contra o Estado Islâmico e não aos ucranianos contra a Rússia, a ministra respondeu da mesma forma: os curdos têm possibilidades de vencer militarmente seus adversários, enquanto que os ucranianos, não.
Voltando a 1983
O clima da conferência foi mais belicoso e agressivo do que nunca. A Rússia foi o único tema e o debate fundamental foi armar ou não armar a Ucrânia. Sem recorrer ao menor senso de responsabilidade. A intervenção do antes respeitado ministro das relações exteriores russo, Sergei Lavrov, foi contestada com risos e perguntas agressivas sem precedentes na sala do hotel de luxo em que a conferência é realizada anualmente. Em uma extraordinária mostra de mudança de rota, o discurso de Merkel expressou o agradecimento alemão ao “valor dos povos da Europa central e oriental” em sua luta contra o comunismo. Isso foi, ela disse, o que tornou possível a unificação da Alemanha. “Até agora se queria citar a contribuição dos dirigentes da reformada URSS àquilo, mas os ventos mudam”, disse filosoficamente um especialista russo, que presenciou o espetáculo de Munique. É preciso retroceder até o outono de 1983, em plena época de Andropov, depois da derrubada do Boeing sul-coreano pelos soviéticos, para encontrar um clima tão hostil a Moscou como o que hoje domina na Europa, disse Andrei Kortunov, um respeitado politólogo ocidentalista russo. “Antes, no nível dos especialistas, se diferenciava entre a propaganda e a análise. Agora se pratica uma mescla de gêneros preocupante”, disse este observador, segundo o qual o principal problema é “a dificuldade dos Estados Unidos em reconhecer as limitações das próprias possibilidades”. Em uma época de emergência de novos polos de poder mundiais, “em Washington se mantém a mentalidade do podemos com todos”, disse.
Medicina grega para a Ucrânia
A situação econômica da Ucrânia é catastrófica. “Yuzhmash”', a grande indústria de Dnepropetrovsk, está paralisada. Faz 8 meses que seus trabalhadores não recebem salário e dez mil deles receberam férias compulsórias. A indústria do automóvel está paralisada: em janeiro, foram produzidas 352 unidades. Por pressões do Fundo Monetário Internacional, que aplica na Ucrânia a mesma política que arruinou a Grécia, os preços do gás vão multiplicar por cinco no primeiro trimestre deste ano, assim como os gastos com moradia, água, energia elétrica etc. Milhões de ucranianos à beira da pobreza serão afetados. Tudo isso apodrecerá a situação social e complicará o clima de violência, desordem e guerra civil em um país cheio de batalhões e milícias descontentes, no qual a população dribla massivamente o recrutamento militar.
Retroceder é perder
O problema fundamental é que ninguém pode se permitir dar passos para trás significativos sem se arriscar a ter grandes derrotas. Se os EUA cedem e permitem que os divididos europeus alcancem o modus vivendi com Moscou, pendente desde o fim da Guerra Fria, sua influência na Europa minguará muito. O que terá que se fazer com a OTAN, organização encarregada da desestabilização continental cujo sentido é, precisamente, manter essa influência militarizando a política exterior? O que acontecerá com o princípio de autoridade (http://blogs.lavanguardia.com/paris-poch/2015/02/05/el-principio-de-autoridad-45435/), com o mau exemplo que o desafio russo lança para todas as potências emergentes de que sim, é possível deter militarmente a intrusão imperial ocidental? É muito difícil esperar passos para trás por este lado. Em relação a Moscou, retroceder significa entrar de cabeça no cenário 1905: completo desprestígio nacional do regime de Putin e abertura para cenários caóticos de maior nacionalismo russo e grandes convulsões sociais. Se para o Ocidente é uma questão de imagem, de prestígio e de disciplina imperial, para a Rússia é um ser ou não ser.
Um ano depois daquele desfile de ministros europeus néscios repartindo solidariedades e bolinhos na praça de Kiev, encontramo-nos com uma guerra na qual não se vê a marcha para trás. E a Alemanha, que nos conduziu ao fracasso do euro, é quem nos deve tirar desse pântano. Que Deus nos leve após termos confessado!
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