terça-feira, 3 de março de 2015

Aguardando o Senhor Crise



Luis Nassif

Há algo em comum entre Brasil e Argentina: a absoluta intolerância que tomou conta do jogo político. Na Argentina, a abertura política se deu sob a égide de Peron. Foi como se, após a longa noite da ditadura, o país retomasse a polarização histórica.
No Brasil, a abertura se deu com novos personagens políticos. Nos anos anteriores desapareceram quase todos os grandes nomes do período pré-militar, Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda, João Goulart. Da fase anterior, restaram Leonel Brizolla e Miguel Arraes, influentes mas sem dimensão nacional.
E a abertura acabou conduzida por articuladores parlamentares, como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, José Sarney, Franco Montoro, costurando as alianças que, mais à frente, abririam espaço para a nova geração que surgia, fundamentalmente paulista, com Mário Covas, Lula, Fernando Henrique Cardoso e os intelectuais uspianos.
De certo modo, PT e PSDB nasciam da mesma semente, uma social democracia incipiente, com laivos modernizantes, de um lado, retórica social, de outro, trazendo a bandeira das ideias moldadas na Constituinte de 1988 e tendo como dois adversários a ditadura e a inflação.
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Aí entram algumas vulnerabilidades brasileiras: a falta de centros de pensamento estratégico, de um pensamento estruturado, que combinasse políticas sociais eficazes, políticas econômicas equilibradas, fazendo com que o pêndulo econômico – entre liberalização e estado social – não se afastasse muito do centro.
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Houve melhoras. Do ponto de vista conceitual, o leque hegemônico da política brasileira se diferencia em torno do maior ou menor ativismo estatal e do maior ou menor apego aos dogmas do mercado financeiro.
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O primeiro movimento radical foi de Fernando Collor, pretendendo enterrar a pesada herança burocrática do período militar. Promoveu desregulamentações relevantes mas matou, com seu radicalismo, várias políticas de longo prazo, como o desenvolvimento da energia nuclear, a indústria naval.
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Fernando Henrique Cardoso prosseguiu nesse caminho, muito mais como o cavalo da umbanda, deixando-se cavalgar pelos economistas do Real.
O simples fato de ter-se domado a inflação incluiu automaticamente milhões de brasileiros no mercado, em um período em que as grandes multinacionais realocavam sua produção por outros centros – de olho na China-Ásia e no Brasil.
O discurso da estabilização foi tão forte que deixou o PT sem bandeiras. E quem não tem bandeiras recorre ao denuncismo como única arma.
Essa oportunidade única foi desperdiçada por interesses pouco claros dos economistas do real na manutenção de um câmbio irresponsavelmente apreciado e em uma política de juros criminosa.
FHC recebeu a economia em condições razoáveis, graças ao trabalho prévio de Collor – reduzindo a dívida pública a golpes de bloqueios e abrindo a economia – e Itamar – acertando o pesado endividamento circular do setor elétrico.
Em pouco tempo, câmbio e juros destruíram o equilíbrio orçamentário e nas contas correntes, produzindo a maior dívida da história sem contrapartida de ativos.
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Os exageros recorrentes, a falta de responsabilidade econômica mataram o sonho neoliberal abrindo espaço para a era Lula.
Lula logrou a inclusão de 40 milhões de pessoas – um feito histórico. Mas manteve a herança maldita do câmbio apreciado e dos juros elevados. Criou-se um enorme mercado de consumo interno sem a contrapartida do fortalecimento industrial brasileiro.
Não fosse a crise mundial de 2008, o país teria enfrentado sua primeira crise externa pós-desvalorização cambial de 1999
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Houve um interregno virtuoso com a crise. O governo saiu da ortodoxia onerosa do período anterior para um ativismo responsável, no qual a atuação dos bancos públicos e dos incentivos fiscais foram essenciais para a superação da crise sem maiores traumas.
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Aí se entra na mesma maldição do pêndulo. O sucesso do ativismo econômico passa a sensação de onipotência ao primeiro governo Dilma, da mesma maneira que a paz dos cemitérios dos juros altos e câmbio baixo iludiram FHC.
Avança-se no voluntarismo com a distribuição ampla de incentivos fiscais, aumento de gastos sem mexer nos limites de superávit, atropelando os estudos e alertas da burocracia competente que trabalha na Secretaria do Tesouro Nacional.
Agora, volta-se o pêndulo para a ortodoxia, com cortes fiscais capazes de suportar uma taxa de juros irracionalmente elevada.
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O ciclo desenvolvimentista morre por inabilidade econômica. E cadê as ideias capazes de sustentar a nova era? Não existem. FHC nunca foi um formulador. E os ventos extraordinários da Constituinte encontram, pela frente, partidos velhos, estratificados, ambos, PT e PSDB, imersos até o pescoço no jogo político raso do presidencialismo de coalizão.
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Resta, então, o uso reiterado do discurso do ódio, facilitado pela insegurança econômica trazida pelos erros de política econômica, potencializada por um trabalho sistemático da mídia, de recriar diariamente o discurso do fim de mundo.
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Sem esse fio condutor da boa política econômica, o resultado é o afloramento dos ressentimentos, o ódio explícito nas redes sociais e nas manchetes da velha mídia.
A radicalização se aprofundará nos próximos tempos. Até que surja um estadista capaz de recompor e unificar o país. Em vários momentos da história, esse estadista extraordinário atendia pelo nome de Sr. Crise.
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