sábado, 28 de fevereiro de 2015

“Eu não vou embora, eu estou chegando”: o discurso de despedida de Mujica



por : Kiko Nogueira

Um amigo adorava de repetir uma blague ao cumprimentar alguém. “É um prazer ser seu contemporâneo”, dizia.
A frase se aplica, sem piada e sem cinismo, a José Mujica, que terminou seu mandato no Uruguai.
Saiu com uma “bagagem cheia de realizações e responsabilidades sobre os seus ombros”, como admitiu num discurso emocionante.
O presidente mais pobre do mundo é o único líder republicano da vida real. Desde que assumiu o cargo em 2010, doou 90% do seu salário para um plano de habitação e continuou a viver em seu rancho nos arredores de Montevidéu com sua mulher, seu Fusca e sua inacreditável cadela de três patas.
Desprezou o palácio e recebia políticos e jornalistas em casa. “Eu não sou pobre. Pobres são os que precisam de muito para viver, estes são os verdadeiros pobres. Eu tenho o suficiente “, declarou.
Colocou seu país na vanguarda promovendo a legalização da maconha e do aborto.
Aos 79 anos, ele mesmo lamentou não ter conseguido fazer algumas obras de infra-estrutura de que gostaria. Não fez a reforma da educação, também. “Uma pessoa se torna presidente com uma cota de idealização e, em seguida, a realidade bate-lhe no focinho”, afirmou. A pobreza caiu para 11,5% e o desemprego está em 6,6%.
Cunhou frases antológicas, deu um exemplo gigantesco de homem público, causou a inveja de quem não o tinha como compatriota, cativou com uma sinceridade desconcertante (Cristina Kirchner, a “velha”, e seu falecido marido Néstor, o “caolho”, sentiram o efeito na pele).
Uma pequena multidão o ouviu dar adeus na Praça de Independência.
“É hora de agradecer a honra que vocês me deram”, disse. Reviu sua trajetória, da infância aos tempos de tupamaro. “Foram anos de estagnação, de utopia militante. Sofremos, causamos sofrimento e somos conscientes. Pagamos preços enormes. Depois de tanto trabalho, entendemos que a luta que você perde é a que você abandona”, afirmou.
“Querido povo, obrigado por seus abraços, por suas críticas, por seu carinho e, sobretudo, muito obrigado por seu profundo companheirismo a cada uma das vezes em que eu me senti sozinho em meio à presidência. Se eu tivesse duas vidas gastaria ambas para ajudar sua luta, porque esta é a forma mais grandiosa de amar a vida que pude encontrar ao longo dos meus quase 80 anos”.
E arrematou: “Eu não vou embora, eu estou chegando. Eu irei com o último suspiro e onde eu estiver, estarei lá por vocês”.
Prazer imenso ser seu contemporâneo.

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