Publicado no Unisinos. O autor é Hugo Muleiro, escritor e jornalista argentino.
O canal Telefe encerrou, nos primeiros dias de 2015, a transmissão de “Flor do Caribe”, telenovela em que a Rede Globo, emissora dominante no Brasil e que costuma perturbar os governos do Partido dos Trabalhadores com operações diversas e sofisticadas, propõe um singular modelo de organização social, em que os brancos, militares e a fé são os únicos capazes de resolver conflitos complexos e dramáticos.
A Globo é uma das maiores produtoras de telenovelas do mundo. Suas transmissões chegam a 90 países e na nossa região possui alianças com a Telefe, Canal 13 do Chile e Azteca do México, entre muitos outros. Dezenas de milhões de brasileiros podem receber, em algum momento do dia, ainda que não procurem e nem desejem, um conteúdo multimídia, por meio de seu canal central, os regionais, rádios, jornais, revistas e a grande presença na internet.
Flor do Caribe transcorre na Vila dos Ventos, balneário paradisíaco sobre o Atlântico, próximo a Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, nordeste, que teve um protagonismo modesto na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos montaram ali uma base aérea pela localização estratégica da cidade, o ponto mais próximo do continente africano. Com autoria de Walter Negrão e direção de Jaime Monjardim, a telenovela transcorre pelos caminhos conhecidos do sujeito mau que trai o amigo bom e quer ficar com sua mulher, em um ir e vir incessante de traições e ciladas.
Porém, o produto é mais complexo já que, de acordo com a sua tendência, a Globo se preocupa em apimentar os assuntos amorosos e o desfile de corpos bronzeados nas praias e águas azuis com toques de realismo político: o avô do mau, por exemplo, é um criminoso de guerra holandês ativo no Holocausto e que, com identidade falsa, construiu um império econômico no Brasil. O politicamente correto é que termina na prisão, julgado na Alemanha.
O modelo que a Globo propõe para a história de óbvio final feliz é uma espécie de “sonho de garoto” da direita brasileira. Em Vila dos Ventos só se conquista a justiça com a ação dos “tenentes”, oficiais da base da força aérea na região.
Lateralmente, a polícia faz alguma intervenção, mas não se veem autoridades civis em nenhuma ocasião, jamais aparecem, porque a organização social que a Globo propõe não os quer.
“Os tenentes” capturam o criminoso nazista, impedem assassinatos, dão uma mão ao bom – ex-aviador militar – todas as vezes que tem um problema, e até ajudam a pintar sua casa.
O comandante, além disso, tem tempo para construir com um jovem do povo uma reprodução de um “disco voador”, que acredita ter visto na infância. Sendo que os militares são assim bons e nos garantem o que precisamos, para que iríamos querer política, eleições e funcionários públicos?
A complexidade da mensagem está dada, por sua vez, por um olhar bem humorado, liberal no bom sentido, diante de vicissitudes incontroláveis como a gravidez que chega antes do casamento ou do jovem garoto musculoso que se apaixona por uma mulher madura. Enfim, gente moderna, mas não mais do que isso, porque deslizam por sua vez em cenas de conservadorismo recalcitrante sobre a mulher.
Por exemplo, o casal principal vai procurar uma casa para viver e, no momento de discutir preço e condições, ela se retira e ele fica sozinho com o vendedor. Na cena seguinte, aparece anunciando a compra, enquanto ela toma um chá e cuida das crianças. Quando dois irmãos, dois amigos, precisam discutir um assunto importante, a mulher da casa se retira prontamente, para lhes preparar um sanduíche ou um refresco.
Não se discute a riqueza e a pobreza na Vila dos Ventos: os vulneráveis recebem a ajuda de uma ONG formada pelos ricos e com isso já estamos bem. Em momentos dramáticos, quando uma tragédia está para se abater sobre os protagonistas, não falta um personagem que encomenda para que Deus resolva o assunto. E a ele se atribui toda a felicidade. Quando o casal principal se casa, durante a comemoração alguém exclama: “Graças ao Santíssimo”. Alguns segundos antes, eles saíram do templo e os primeiros a apresentar honras são os militares, baionetas ao alto.
E algo infalível em grande parte da televisão brasileira: ainda que 52,2% dos 3,1 milhões de habitantes do Rio Grande do Norte vêm da mistura de raças, os três personagens principais são brancos, de máxima brancura, assim como os advogados, a maioria dos tenentes, o delegado policial. Mestiços e negros podem se ver, sim, trabalhando nas minas ou na pesca.
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