terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Por que o enredo do filme “A Entrevista” revoltou a Coreia do Norte
BBC Brasil.
Fontes no FBI, a polícia federal americana, asseguram que a Coreia do Norte está por trás do recente ataque cibernétrico à Sony Pictures, atribuído a um grupo de hackers que se autodenomina GOP (Guardians of Peace – ou Guardiões da Paz, em tradução livre).
A notícia de que o regime norte-coreano estaria envolvido no roubo de informações surgiu dois dias depois de a Sony anunciar que suspenderia o lançamento do filme A Entrevista, uma paródia a Kim Jong-un, líder do país asiático.
O estúdio tomou a decisão depois de algumas das principais redes de cinemas dos Estados Unidos cancelarem a exibição do filme. Elas alegam ter sofrido ameaças de hackers da GOP.
Tais acontecimentos – que incluem a interceptação de uma enorme quantidade de dados da Sony Pictures, incluindo milhares de e-mails trocados pelos principais executivos do estúdio – causaram revolta e surpresa em Hollywood.
Kate Perry
Muita gente se pergunta: o que acontecerá com a liberdade de expressão na meca do cinema mundial, uma vez que piratas eletrônicos são capazes de evitar que um filme, por mais polêmico que seja, chegue às salas de projeção?
A Entrevista gira em torno de um plano para que jornalistas norte-americanos – interpretados por James Franco y Seth Rogen – assassinem Kim Jong-un.
No filme, o líder norte-coreano é fã de um talk-show com famosos apresentado pelo personagem de Franco. O fato é então aproveitado pela CIA, que decide orquestrar uma viagem dos repórteres à nação asiática com o objetivo de assassinar o mandatário.
Na tela, Kim Jong-un e o jornalista Dave Skylark – interpretado por Franco – compartilham seus vícios por basquete, pelas músicas de Katy Perry e pelas mulheres.
Preocupação
De acordo com os e-mails de executivos da Sony trazidos a público nas últimas semanas, a direção do estúdio estava mesmo preocupada com a reação da Coreia do Norte à estreia de A Entrevista – mesmo antes de um funcionário do governo de Pyongyang classificar a película como um “ato de guerra”, em junho passado.
No mês de maio, por exemplo, um alto executivo da Sony disse ter reservas à data inicialmente prevista para a estreia do filme.
Keith Weaver considerava que a estreia em 10 de outubro não seria uma boa indeia, já que neste dia a Corea do Norte celebra uma de suas festas nacionais mais importantes.
Em junho, a Sony Pictures decidiu que as ações promocionais do filme, junto a seus diretores e protagonistas, deveriam minimizar a importância do roteiro político de A Entrevista.
O temor de possíveis repercussões negativas também ficava claro num e-mail em que Amy Pascal, vice-presidente da Sony Pictures, sugeria a Seth Rogen – codiretor ao lado de Evan Goldberg – mudanças na cena em que se vê a cabeça de Kim Jong-un explodindo. A ideia era torná-la menos sangrenta.
Mas estas cenas realmente justificam os ataques cibernéticos à Sony que supostamente foram orquestrados pelo governo da Coreia do Norte? Alguns dos jornalistas consultados pela BBC que chegaram a assistir ao filme não acham que seja para tanto.
“Humor vulgar”
“Tenho a sensação de que o motivo pelo qual não se está falando muito sobre o filme é porque ele nem chega a ser uma boa comédia”, diz Scott Foundas, crítico da revista Variety.
“Ao longo das décadas vimos bons filmes cuja história acontece em regimes totalitários, como O Grande Ditador, de Charles Chaplin, ou Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick. No caso de A Entrevista, não me parece um filme especialmente subversivo ou surpreendente”, assinala Foundas.
“É uma película de humor vulgar e juvenil, cujo argumento acontece por casualidade na Coreia do Norte, mas que poderia estar situado em qualquer outro lugar.”
O crítico da Variety não acredita que ninguém que assista a A Entrevista considere o filme “incendiário no ponto de vista político” e acredita ser irônico que um filme como este tenha causado tanta revolta, “já que é bastante inócuo”.
“Kim Jong-un é apresentado da maneira mais óbvia, tendo-se em conta o pouco que se sabe dele. O mostram como um menino mimado que tem traumas com seu pai.”
“Muitas das cenas do filme consistem em Kim Jong-un jorgando basquete ou escutando a músicas de Katy Perry com o personagem de James Franco”, explica o jornalista.
‘Liberdade de expressão’
Jen Yamato, crítica de cinema da Deadline Hollywood, tem uma opinião mais favorável ao filme, ainda que também não creia que seu enredo justifique o ataque sofrido pela Sony.
“Achei divertida e acho que é uma boa sátira do mundo do jornalismo, em particular o jornalismo de entretenimento e celebridades, e sobre como às vezes ele se mistura com a política”, diz Yamato em entrevista à BBC Mundo.
“Alguns dirão que é só mais uma comédia de James Franco e Seth Rogen, mas a acho mais sofisticada que isso. A ideia de fazer ficção a partir da intenção de assasinato de um líder mundial ativo nunca tinha sido feita dessa maneira”, diz a jornalista.
“Cinema é arte, e através da arte é possível fazer interpretações sobre a atualidade e a política”, diz Yamato.
Justificada ou não a ira do governo norte-coreano com o argumento de A Entrevista, o certo é que o cancelamento de sua estreia causou surpresa e indignação em Hollywood. Muitos consideram que o ataque à Sony e as ameaças dos hackers do GOP não deixaram alternativas ao estúdio.
“Se houvesse acontecido algum incidente em algum cinema, a Sony teria que enfrentar processos de dezenas de milhões de dólares e se teria criado um problema enorme”, alerta Stephen Galloway, editor da revista The Hollywood Reporter.
“Acho que se trata da um precedente terrível, mesmo que a Sony não tivesse outra saída. Este ataque causou muitos danos ao estúdio e vão perder muito dinheiro”, afirma.
Galloway conhece há anos Amy Pascal, vice-presidente da Sony e uma das pessoas mais prejudicadas pelos vazamentos do ataque cibernético.
“É triste. Amy Pascal é uma amante do cinema. É incrível que agora se veja envolta em um incidente com ramificações de política internacional que envolveu até Barack Obama. Deve ser tremendamente difícil para ela.”
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