No dia em que se festeja a "fundação" da cidade, que tal uma reflexão sobre os mitos?
Na história dos povos criam-se mitos, fatos relatados com pouca ou nenhuma comprovação, mal apurados e às vezes meramente inventados. Intencionais quando interessam aos grupos de poder manter determinadas aparências. Por isso criam-se heróis e fatos heroicos cuja veracidade deve permanecer no limbo das verdades consentidas porque cômodas ou vantajosas. É por isso que se diz que a cidade de Santarém, no Pará, foi fundada por João Felipe Bettendorf em 1661. Só que, quando esse jesuíta luxemburguês chegou por lá, já encontrou João Corrêa, português que, provavelmente já fazia parte de uma pequena colônia lusa espalhada nas redondezas de onde viria nascer Santarém. Não seria ele o "fundador"? Esta questão vai aqui como provocação aos historiadores de hoje.
Então, quando o missionário jesuíta chegou à confluência do Amazonas com o Tapajós, já havia um núcleo europeu convivendo com os indígenas. Logo, porque não seria este "atoassanã" o fundador? Ele falava muito bem a língua tupaiú e conhecia bem o povo com o qual se relacionava que chegou a traduzir o primeiro sermão de Bettendorf aos tupaiús, nos seguintes termos:
“Filhos, como eu sou ainda pouco praticado em os estylos destas terras, pela pouca assistencia que em ellas tenho feito até agora, por haver pouco que sou vindo do Reino, desejando eu saber o verdadeiro modo de as governar, ouvi dizer que haveis de ser governados com pancadas como se governam os brutos, por não seguirdes a razão que Deus deu aos homens para se dirigirem por ella; não me posso persuadir que isto seja assim e portanto quero fazer experiência antes de crêl-o. Olhae os Mandamentos da Lei de Deus, todos se fundam em a razão, e quem os seguir deve-se chamar homem racional, e pelo contrario quem não os quer seguir este se póde chamar de bruto, e se deve governar com pancadas como se governam os animaes irracionaes” (Relatado pelo próprio Betendorf, em sua Crônica).
É claro que o Padre Bettendorf não foi mandado por Antônio Vieira fundar uma vila ou uma cidade. Ele foi despachado para organizar a catequese e, dessa forma, angariar maior obediência dos indígenas ao processo colonizador que se aprofundava na direção do interior da região. Se assim foi, o Atoassanã poderia ter sido o efetivo "fundador" do processo colonizador entre aquele povo, este sim, o verdadeiro fundador da primitiva civilização que havia naquele lugar, já visitado por espanhóis e lusos décadas antes de Bettendorf.
Seja lá quem foi o pioneiro europeu, já havia naquele lugar hoje chamado Santarém um vigoroso núcleo humano, com cultura própria, agricultura em estágio avançado para a época e um povo guerreiro, como atestou em 1637 o Padre Acuña, que contabilizou, nas areias do Rio Tapajós, 40 mil guerreiros com seus arcos e flechas envenenadas. Tão bravos eram que os europeus os dizimaram em curto prazo: 50 anos após a conquista de suas terras e a derrocada de sua cultura, o Tupaiús já quase não existiam, a não ser restos humanos desfigurados pela cachaça e a saudade de sua gente destruída. Pelo teor do sermão de Bettendorf, compreende-se bem esse processo destrutivo de um povo.
Restos de Bettendorf estariam em Belém, na Igreja de S. Alexandre
Reverenciado como fundador da cidade de Santarém, no coração da Amazônia, núcleo que teve como origem a missão jesuítica realmente fundada pelo Padre Joaõ Felippe Bettendorf em 1661, as informações históricas a respeito dele precisam ser melhor pesquisadas. A importância desse missionário extrapola o aspecto puramente religioso, dado o grande relato que deixou sob o título Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, que Bettendorf produziu por ordem de seu superior, Antônio Vieira. Aí há dados de suma importância daquele período inicial da colonização. Não há dados precisos sobre o ano de sua morte nem onde foi enterrado (Foto: M. Dutra: Colégio e igreja de S. Alexandre, em Belém)
Sabe-se, ao certo, que o Padre João Bettendorf foi Reitor (diretor) do Colégio de Santo Alexandre, em Belém, prédio de bela arquitetura restaurado há poucos anos. Ali eram inumados os corpos dos religiosos que lá serviam, como missionários ou professores. Porém, reforma após reforma do prédio tornam um desafio descobrir onde, e se, ali está também Bettendorf. Provavelmente sim, pois ali ele escreveu a sua crônica, em idade por volta dos 70 anos, o que não era pouco para o final do século 17.
Sua Crônica foi editada pela primeira vez em 1910, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em forma de livro, que foi facsmiliado em 1990 pela Secretaria de Cultura do Pará, sendo o número 5 da coleção Lendo o Pará.
Em Nota Prévia a essa edição, Vicente Salles afirma que Bettendorf morreu em 5 de agosto de 1698, aos 71 anos de idade. Porém, no Prefácio anônimo da edição do IHGB, à página IX, está escrito: "O ano e o lugar de sua morte ainda hoje são ignorados, supondo-se que chegou a idade bastante avançada, porque no fim da Crônica faz referência à memória de D. Pedro II (de Portugal), falecido em 1706. Diz ainda o Prefácio: "Em uma nota manuscrita, encontrada à margem do capítulo 14 do livro 9o. lê-se que assistira aos terríveis efeitos de nova epidemia de varíola no Pará, em 1724". Se comprovada esta informação histórica, Bettendor terá morrido quase centenário.
Estes desencontros históricos podem se transformar num desafio aos membros no recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, com sede em Santarém.
Bettendorf esteve pouco tempo na missão de N. S. da Conceição, na confluência do Amazonas com o Tapajós. Teria passado ali algo em torno de um ano. Saiu do lugar fugindo pelo mato, temendo as perseguições aos jesuítas. Estes aspectos, assim como a possibilidade de certificar-se sobre a existência de seus restos mortais em Santo Alexandre, em Belém, deveriam ser objeto de pesquisa por parte dos intelectuais e da prefeitura de Santarém, para onde poderiam ser levados os restos do "fundador".
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