quarta-feira, 2 de abril de 2014

O golpe no interior do Pará


A Orla do Tapajós, em frente a Santarém: obra dos militares que, por isso e outras obras, 
ficaram simpáticos a muitos santarenos. A cidade era área de segurança nacional

Santarém e o Golpe de 1964

Por Cristóvam Sena - Diretor do Instituto Cultural Boanerges Sena

Primeiro de abril de 2014. Data significativa, 50 anos do Golpe Militar. Eu, com 16 anos, terminando o ginasial no Dom Amando, guardo poucas lembranças desse fato que mudou a vida dos brasileiros, direta ou indiretamente, por nos colocar sob o comando de um regime de exceção.


Vivia o início da minha curta carreira de jogador de futebol. Márlio Cunha, professor de educação física no Dom Amando e treinador do América, me levou para treinar no campo do Seminário e no dia 15 de agosto de 1964 eu estreava no campeonato contra o Náutico. Vencemos por 2x1. No ano seguinte, 1965, conquistamos pela primeira e única vez o campeonato santareno.
Do meu tempo de estudante no Dom Amando a única lembrança que guardo do golpe foi a exclusão da matéria que eu mais gostava, filosofia. Com ela iniciei a cultivar o pensamento crítico, a procurar respostas fora das crenças pré-estabelecidas. Foi substituída por Estudo dos Problemas Brasileiros. Era o regime nos obrigando a parar de aprender a pensar e, ao mesmo tempo, tentando reescrever a história do Brasil, agindo como o "Grande Irmão" descrito por George Orwell no livro 1984. E o Golpe passou a ser comemorado no dia 31 de março, fugindo do dia da mentira. 
José da Costa Pereira, o Zeca BBC, era um dos
poucos "esquerdistas" locais, mas nunca foi
importunado pelos militares

Em Santarém não tínhamos comunistas declarados, o único que se considerava "bolchevista" era o José da Costa Pereira, famoso Zeca BBC, que não chegou a ser perseguido. Estávamos longe do epicentro do Golpe, suas consequências chegaram por aqui na forma de repressão política, a começar pela deposição do prefeito Elias Pinto em 1967. Depois, em 1969, Santarém foi considerada Área de Segurança Nacional e deixou de eleger seus prefeitos. Surgia a figura do interventor, que teve início com Elmano de Mouro Melo, indicação de Brasília. Como os santarenos não aprovaram a indicação e os políticos paraenses fizeram coro, os outros interventores foram indicados pelo governador do estado. A excrescência dos interventores terminou com Adelerme Maués Cavalcante, em 1985. 
No final de 1968 já estava em Belém pra jogar futebol e estudar. Através da leitura do Pasquim tomei conhecimento da extensão do Golpe, mas não cheguei a participar dos movimentos estudantis de enfrentamento ao regime militar. Minha índole pacifista me aconselhava a ficar como observador. Ainda estava envolvido pelo clima do futebol, morava na concentração do Paysandu. 
De volta a Santarém montei uma biblioteca que deu origem ao Instituto Cultural Boanerges Sena. Com tempo e disposição para ler, tive oportunidade de estudar melhor o Golpe, contextualizá-lo com o que acontecia no mundo. Sua relação com a Guerra Fria, que colocou em campos opostos o imperialismo ocidental (Estados Unidos) e socialismo real (União Soviética), a interferir diretamente na vida política ao redor do mundo. Nada acontecia sem o conhecimento e consentimento deles. Assim foi no Golpe de 1964. 
Convidado a participar de debates sobre os 50 anos do Golpe Militar, vem sempre a pergunta do porquê dos santarenos que viveram aquela época sentirem saudades dos militares. Respondo que vivendo sem internete e televisão, colhendo as poucas informações através das ondas do rádio, o grosso da população não se interessava pelo o que acontecia em Brasília e no eixo Rio/São Paulo.
Por não terem presenciado perseguições nem torturas, não saberem o que acontecia nos porões do DOI CODI (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) órgão repressor criado pelo Regime Militar, o regime de exceção foi assimilado pelos menos esclarecidos, a esmagadora maioria, somente pelas grandes obras (hidrelétrica de Curuá-Una, cais do porto, cais de arrimo, Santarém/Cuiabá, aeroporto, Hotel Tropical, galerias de esgoto...) que chegaram sem ninguém esperar e de um só vez a Santarém, dando à população a sensação de que agora sim o desenvolvimento estava chegando e veio para ficar. Com as grandes obras em andamento, a cidade vivia o pleno emprego, não tinha motivos para protestar, para não defender os militares. 
Hoje, a preocupação dos que analisam o Golpe é identificar de que lado estavam os heróis e os bandidos. O que acaba embaralhando o entendimento do embate político/ideológico que ele representou para o Brasil, num mundo envolvido pela efervescência da Guerra Fria. O discurso de salvar o Brasil das garras do comunismo foi o pano de fundo usado pelos militares para abocanhar o poder, com assessoria direta dos Estados Unidos. E o poder corrompe, seja fardado ou paisano, na ditadura ou na democracia. Se o outro lado tivesse saído vitorioso seríamos hoje um outro país. Não tenho a menor dúvida. Só não posso afirma se estaríamos melhor ou pior do que estamos agora.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. A frase é conhecida, mas, quanto à autoria, há controvérsias. Alguns a atribuem a Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, outros creditam a Aldous Huxley, autor de Admirável mundo novo. O certo é que ela foi utilizada pelos militares que a colocaram nas paredes dos quartéis e nas sedes dos Tiros de Guerra. 
E é isso mesmo. Só se conserva a liberdade democrática pela eterna vigilância. Vigilância através do voto, do protesto de rua, da sociedade organizada. Vigiar sempre, porque o homem, na sua essência, é ditador.
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