O bom samaritano
Por: Bruno Nóbrega
É essencialmente colocar o coração na miséria alheia.
“E quem é o meu próximo?”, foi a pergunta feita por um doutor da lei a Jesus, quando do encontro à entrada de Jerusalém.Voltemos um pouco.
Cerca do ano 700 a.C., as doze tribos de Israel passaram por um grande cisma, que culminou com a separação entre as dez tribos do norte, cuja capital era Samaria, e as duas tribos do sul, que tinham Jerusalém como a principal cidade.
A relação tornou-se bem parecida com o que acontece hoje entre judeus e palestinos. As desavenças chegaram ao ponto da construção de um templo em Samaria para que seus habitantes não precisassem sequer passar por Jerusalém.
Avançando no tempo, em certa ocasião, Jesus se dirige aos seus apóstolos e avisa que gostaria de ir a Jerusalém para a celebração da Páscoa (a mesma em que ele acabaria crucificado). Porém, precisaria antes passar pela Samaria, deixando a todos perplexos. Além de ser o caminho mais longo, era extremamente perigoso.
Liderados por João Evangelista, alguns se adiantaram no percurso para providenciar um lugar onde Jesus pudesse repousar. Naquele tempo, era um costume sagrado oferecer abrigo aos peregrinos do deserto.
Quem desrespeitasse essa tradição, dizia a lenda, teria sua casa e sua família destruídas por um “raio de fogo vindo do céu”. Ainda assim, João, um judeu a caminho de Jerusalém, viu todas as portas se fecharem.
Irritado, ele volta ao encontro do grupo e pergunta a Jesus se Ele não gostaria que pedissem aos céus para queimar a Samaria inteira. Jesus respondeu que “o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los”.
E a jornada seguiu.
Após muitas horas de viagem, sem comida, sem água e sem repouso, eis que, à entrada de Jerusalém, Jesus se encontra com um doutor da “lei” — no caso, o pentateuco mosaico, os cinco livros que compõem a Torá.
Era um homem intelectualizado, profundo conhecedor do ordenamento, que entendeu ser aquele um momento propício para alguns questionamentos.
O jurista pergunta: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?” Ao que Jesus retruca, estabelecendo as bases daquele diálogo: “O que está escrito na lei? Como você a lê?”
E a resposta foi “Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento. E ame o seu próximo como a si mesmo”.
“Você respondeu corretamente, faze isso e viverá”, disse Jesus.
Curiosa essa situação. O doutor da lei, tendo sido o primeiro a perguntar, acabou respondendo à própria pergunta, e ainda ouviu que estava de parabéns pela resposta. De doutrinador, tornara-se aluno.
Não era para menos, considerando quem estava do outro lado.
Mais intrigantes ainda são as duas indagações de Jesus, diferenciando o que “está na lei” daquilo que “se lê” na lei. Uma coisa é o que está escrito; outra é como você entende. A depender da leitura que se faça dos textos sagrados, é possível tanto salvar o mundo quanto destruí-lo.
Em seguida o intérprete, ignorando o cansaço, a sede e a fome do grupo, continua: “E quem é o meu próximo?”
Nesse instante, Jesus narra uma das mais surpreendentes parábolas de todo o Cristianismo.
“Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado.
Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe disse: ‘Cuide dele. Quando eu voltar, pagarei todas as despesas que você tiver’.”
E completa: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
Perceba a inversão da perspectiva: o exegeta, numa postura seletivista, pergunta quem é o próximo dele. Mas Jesus o faz analisar a questão de maneira abrangente, proativa, pela ótica daquele que necessita de ajuda.
Dessa forma, Ele deixa que o próprio doutor afirme, sob pena contradizer as leis das quais é especialista, que o próximo foi “aquele que teve misericórdia” — ainda que se tratasse de um samaritano, um inimigo mortal.
O estudioso da lei finalmente havia compreendido a lição, e nada mais disse. A sabedoria, porém, não se esgota aí.
O detalhe de o homem assaltado estar descendo de Jerusalém em direção a Jericó traz consigo um forte simbolismo. No plano topográfico, as duas cidades estão realmente separadas; são cerca de mil metros de diferença de altitude. Sair de Jerusalém rumo a Jericó é uma descida que aqui deve ser entendida de forma alegórica.
Afastar-se de Jerusalém, a cidade santa, o centro do universo monoteísta, equivalia a distanciar-se de Deus. Jericó, por sua vez, era um lugar comercial, de prazeres mundanos. Era, portanto, uma queda moral.
Na parábola, esse mesmo trajeto é percorrido pelo sacerdote e pelo levita, seu fiel seguidor. Era subversivo sugerir que uma figura do alto escalão social, juntamente com seu correligionário, estivesse desrespeitando os preceitos legais mais elementares ao passar ao largo de um homem caído à beira da estrada.
Segundo a tradição, aquele sacerdote só teria a obrigação de ajudar um “irmão” judeu. Mas como reconhecer um dos seus irmãos caso ele estivesse desacordado, desfigurado e nu?
Como, afinal, ele poderia, sem causar má impressão aos demais membros do grupo, considerar como irmão alguém que talvez não usasse as mesmas vestes nem tivesse o mesmo sotaque?
Não por acaso, esse indivíduo é o único que permanece anônimo.
Eis que surge, como heroi da história, o samaritano — um sujeito que pertence àquele mesmo povo que negou abrigo a Jesus e seus discípulos quando da peregrinação a Jerusalém.
Ele limpa o homem caído, coloca-o sobre sua montaria, leva-o a uma estalagem e paga pelos seus cuidados. Talvez incomode a alguns o fato de um herege ter cumprido rigorosamente a lei de Deus.
Ninguém é o próximo de ninguém por uma condição “a priori”. Relações familiares, matrimoniais, pessoais jamais foram garantia de nada nesse sentido.
Próximo é aquele que de fato exerce a compaixão, é quem “coloca o coração na miséria alheia”, nos dizeres de Guimarães Rosa.
É algo, enfim, que talvez nos tornemos para alguém, no dia em formos capazes de fazer a diferença.
E completa: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”
Perceba a inversão da perspectiva: o exegeta, numa postura seletivista, pergunta quem é o próximo dele. Mas Jesus o faz analisar a questão de maneira abrangente, proativa, pela ótica daquele que necessita de ajuda.
Dessa forma, Ele deixa que o próprio doutor afirme, sob pena contradizer as leis das quais é especialista, que o próximo foi “aquele que teve misericórdia” — ainda que se tratasse de um samaritano, um inimigo mortal.
O estudioso da lei finalmente havia compreendido a lição, e nada mais disse. A sabedoria, porém, não se esgota aí.
O detalhe de o homem assaltado estar descendo de Jerusalém em direção a Jericó traz consigo um forte simbolismo. No plano topográfico, as duas cidades estão realmente separadas; são cerca de mil metros de diferença de altitude. Sair de Jerusalém rumo a Jericó é uma descida que aqui deve ser entendida de forma alegórica.
Afastar-se de Jerusalém, a cidade santa, o centro do universo monoteísta, equivalia a distanciar-se de Deus. Jericó, por sua vez, era um lugar comercial, de prazeres mundanos. Era, portanto, uma queda moral.
Na parábola, esse mesmo trajeto é percorrido pelo sacerdote e pelo levita, seu fiel seguidor. Era subversivo sugerir que uma figura do alto escalão social, juntamente com seu correligionário, estivesse desrespeitando os preceitos legais mais elementares ao passar ao largo de um homem caído à beira da estrada.
Segundo a tradição, aquele sacerdote só teria a obrigação de ajudar um “irmão” judeu. Mas como reconhecer um dos seus irmãos caso ele estivesse desacordado, desfigurado e nu?
Como, afinal, ele poderia, sem causar má impressão aos demais membros do grupo, considerar como irmão alguém que talvez não usasse as mesmas vestes nem tivesse o mesmo sotaque?
Não por acaso, esse indivíduo é o único que permanece anônimo.
Eis que surge, como heroi da história, o samaritano — um sujeito que pertence àquele mesmo povo que negou abrigo a Jesus e seus discípulos quando da peregrinação a Jerusalém.
Ele limpa o homem caído, coloca-o sobre sua montaria, leva-o a uma estalagem e paga pelos seus cuidados. Talvez incomode a alguns o fato de um herege ter cumprido rigorosamente a lei de Deus.
Ninguém é o próximo de ninguém por uma condição “a priori”. Relações familiares, matrimoniais, pessoais jamais foram garantia de nada nesse sentido.
Próximo é aquele que de fato exerce a compaixão, é quem “coloca o coração na miséria alheia”, nos dizeres de Guimarães Rosa.
É algo, enfim, que talvez nos tornemos para alguém, no dia em formos capazes de fazer a diferença.
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