Por Cynara Menezes (Carta Capital)
As canções de Raul Seixas fazem parte das minhas primeiras memórias
musicais. Quando era criança, no interior da Bahia, Raul fazia um
sucesso tremendo. Antes de começarem as matinês dominicais do cine Éden,
em Ipiaú, na região cacaueira, onde moram meus avós, sempre tocavam “Al
Capone”. E, nos cafundós onde morávamos graças ao emprego de gerente de
banco do meu pai, o rádio tocava “Ouro de Tolo” direto. Eu, pequenina,
achava incrível aquele negócio de “boca escancarada cheia de dentes
esperando a morte chegar” e não sei o quê do disco voador.
Adulta, entendi “Ouro de Tolo” e a mensagem da canção me tocou
profundamente: “Eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o
dito cidadão respeitado e ganho 4 mil cruzeiros por mês”. É o tipo de
coisa que faz qualquer um cair na real, por mais jovem e pedante que
seja. Já morando em Brasília, um amigo fã de Raul me apresentaria outras
grandes canções: “A Maçã”, “Mata Virgem”, “Judas”, “O Trem das Sete”,
“Canto Para a Minha Morte”, “O Conto do Sábio Chinês”. Em São Paulo,
cobri a passeata dos raulseixistas em homenagem aos 10 anos de sua
morte, em 1999. Um barato: o encontro acontece até hoje, em agosto, e os
policiais costumam dar trégua aos fãs que acendem cigarrinhos
raulzísticos no percurso.
Por tudo isso, imaginem o tamanho da minha emoção ao ir ver “Raul: O
Início, o Fim e o Meio”, documentário de Walter Carvalho sobre o
roqueiro baiano que está em cartaz em todo o país. E o filme não é ouro
de tolo. Sua principal qualidade, em minha opinião, é ser
jornalisticamente impecável. As entrevistas não são feitas para levantar
a bola dos entrevistados ou do ídolo, como às vezes acontece. Todos são
colocados na parede: ex-mulheres e parceiros, sobretudo Paulo Coelho,
com quem Raul Seixas compôs grandes sucessos como “Gita” e “Sociedade
Alternativa”, e Marcelo Nova, o derradeiro partner. Na verdade,
só Cláudio Roberto, co-autor em “Maluco Beleza” e “O Dia Em Que a Terra
Parou”, entre outros sucessos, escapa do olhar duro do documentarista.
Quem só conhece o Raul inchado do fim da carreira vai ficar impressionado com o espetacular performer
que foi no auge, na década de 1970: um Mick Jagger com sotaque baiano. O
documentário de Carvalho também acerta ao definir o exato tamanho da
obra musical dele, comparando-a aos tropicalistas. Raul foi um dos
primeiros em misturar ritmos brasileiros ao rock, como em “Let Me Sing,
Let Me Sing”, de 1972.
Neste aspecto, um generoso e delicado Caetano Veloso dá um dos
melhores depoimentos do filme, que passa longe do clichê “maluco
beleza”. Aliás, fica claro ali que Raul Seixas criou o mito do “maluco
beleza” mas não foi, ele mesmo, um deles. Levou drogas e álcool às
últimas consequências, exatamente o oposto do que um “maluco beleza”
faria. A representante do que Raul quis dizer na canção aparece na
figura da produtora Maria Juçá, a única raulseixista legítima do filme.
“O Início, o Fim e o Meio” é emocionante de chorar e divertido de
gargalhar, extremos que certamente agradariam Raul Seixas, o canceriano
sem lar. Só não responde uma pergunta: por que Raul queria se anestesiar
tanto da vida ao ponto de, em uma das fases finais, chegar a cheirar
éter? Por que nunca “podia estar contente”? Na entrevista de lançamento,
o diretor Walter Carvalho expôs a teoria de que o cantor sofreu até o
fim por amor à primeira mulher, Edith, paixão que nunca teria superado.
Mas o filme, ao contrário, mostra que Raul viveu uma longa e sofrida egotrip e nunca pareceu amar ninguém tanto assim.
O que vi foi um rapaz inocente, puro e besta, como se define na
canção “Sessão das Dez”, fã de Elvis Presley, careta de tudo, e que
subitamente perde a sua inocência. Acho que Raul passou a vida não
sentindo saudades da primeira mulher, mas da inocência perdida – e
talvez aí Carvalho tenha certa razão, porque Edith, sua vizinha em
Salvador, fez parte dessa época. Mas quem chega mais perto de desvendar o
mistério de Raul, para mim, é mesmo seu ex-parceiro Paulo Coelho, nesta
frase de um especial para a tevê: “Ele foi uma pessoa que pagou o preço
dos seus sonhos”. A vida é dura para os sonhadores, mesmo.
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