Fela - Esta Vida Puta (Nandyala)
O músico nigeriano Fela Kuti estava vivo em 1982, quando o historiador e etnólogo cubano Carlos Moore publicou sua biografia, inicialmente na França. Fela está morto desde 1997, Moore mora na Bahia e somente em 2011 uma editora brasileira se interessou por publicar esse apaixonado e apaixonante trabalho. Fela – Esta Vida Puta sai por iniciativa do selo mineiro Nandyala, introduzido por um belo e emocionado prefácio de Gilberto Gil.
"A África, com seus muitos povos e muitas culturas, é o continente onde o destino trágico que tem marcado a raça humana se apresenta com sua máscara ao mesmo tempo mais bela e mais horrenda", começa Gil, em poucas palavras que sintetizam muito do que virá adiante.
A maior parte delas investia frontalmente contra governantes africanos que levavam adiante a "mentalidade colonial" aprendida pela África no jugo europeu.
Juntas, constituíram um gênero próprio e original, o afrobeat, formulado sob doses maciças de jazz, funk à moda de seu influenciador James Brown e, acima de tudo, africanidade. Se as palavras afrontavam líderes políticos, as linhas melódicas ultrajavam a indústria fonográfica "fast food": raramente um groove de Fela Kuti durava menos que dez minutos, uma faixa por lado de cada LP que ele concebia e publicava em velocidade de cometa.
"Sorrow, Tears and Blood" foi composta sob o impacto de um ataque feroz do governo nigeriano à chamada República de Kalakuta, onde Fela vivia em comunidade com namoradas, músicos e agregados, no núcleo nervoso de uma periferia pobre de Lagos, a cidade mais populosa da Nigéria. Kalakuta foi incendiada, e as mulheres, violentamente espancadas e estupradas.
O casamento coletivo atiçou a abordagem moralista sobre a figura de Fela pela mídia na África e fora dela, mas parece ter sido um posicionamento dele em relação à violência que se abateu principalmente sobre as mulheres da "comuna".
Moore procura atravessar o nevoeiro, valorizando as figuras femininas ao redor de Fela, segundo ele "altamente politizadas". Detém-se sobre a mãe do artista que, a partir dos anos 1940, ajudou a fundar a Associação das Mulheres Nigerianas e a conquistar o voto feminino no país. Foi vice-presidente da Federação Democrática Internacional das Mulheres e dá voz a 16 das esposas do músico, em entrevistas que ocupam quase um terço do livro.
Não camufla a relação de submissão entre ele e elas, até porque o viés despótico e misógino de Fela seria exposto cruamente na canção "Mattress" (1975), em que afirmava que as mulheres eram, para ele, colchões nos quais se deitava para descansar. Não poupa a revelação dolorosa de que Fela, que fora espancado pelo pai e pela mãe quando menino, também costumava bater nas esposas, na mais típica fórmula "o abusado se converte no abusador".
Moore privou da confiança de Fela a ponto de a capa estampar o rótulo garantidor de "biografia autorizada". Mas nem por isso escamoteou as (muitas) facetas sombrias de um homem hiperbólico, que gravou algo próximo de 80 discos, casou-se com 27 mulheres de uma vez em 1978 ("só transava com elas, não transava com mais ninguém de fora", Fela justifica para o biógrafo), foi perseguido, espancado, preso, julgado e condenado inúmeras vezes por toda uma linhagem de ditadores nigerianos.
Não é de espantar que Fela seja pouco mencionado pela cultura oficial do Brasil. Contra ditames que se arrepiam à mais leve menção do gênero "canção de protesto", Fela advogou que música e política são dimensões intrinsecamente conectadas. Sob essa convicção, inventou uma amálgama que borbulhava criações com nomes como "Why Black Man Dey Suffer" (1971), "Unnecessary Begging" (1976), "Coffin for Head of State" (1981), "Colonial Mentality" (1977) e "Sorrow, Tears and Blood" (1977).
O parafuso dá várias voltas até chegar ao epílogo incluído nas edições posteriores à morte do artista, aos 58 anos, em decorrência da Aids. Ali, o biógrafo ultrapassa a pergunta-tabu que ficara no ar, não formulada, nas entrevistas com as esposas e conta que, após uma de suas prisões, Fela passou a admitir a infidelidade de suas "rainhas" e a atacar a instituição do casamento. O matrimônio coletivo seria encerrado com um divórcio também coletivo, quando parte das mulheres já havia abandonado o "reinado" de Kalakuta. "Ciúme não é uma palavra africana", afirma uma das esposas, em outro canto do livro.
Nesses trechos póstumos Moore se permite, também, comentar em tom crítico a reprovação de Fela à homossexualidade, bem como o advento, em 1991, de "Condom, Scaliwag and Scatter", uma canção anticamisinha. "É evidente que Fela, tragicamente – como a maioria das pessoas na época –, não compreendia o que a Aids realmente era", conclui o biógrafo.
O perfil que Esta Vida Puta elabora, com cumplicidade dos nem sempre lúcidos depoimentos em primeira pessoa de Fela, é de um homem essencialmente contraditório, ao mesmo tempo autoritário e sedento de libertação. Mas fica evidente que não é por isso que os aparatos oficiais, sejam africanos, europeus ou brasileiros, digeriram e digerem Fela Kuti com dificuldade. "Antes eu não sabia realmente quem eu era. Eu admirava o homem branco como se ele fosse senhor de tudo", diz Fela a certa altura, deixando evidente que era diante desse espelho distorcido que ele, em seus anos mais loquazes, colocaria os líderes políticos africanos que tanto detestava. Em meio à carreira, ele abandonaria o nome do meio herdado de um missionário branco, deixando de assinar Fela Ransome Kuti para virar Fela Anikulapo Kuti.
A narrativa explicita o desprezo de Fela pela "grande" indústria fonográfica. Relata que o artista, já alquebrado por sucessivos baques, recusou uma proposta multimilionária de ter seu catálogo comercializado pela meca negra norte-americana Motown. Cita, de passagem, que Fela nutriria desconfiança em relação a Bob Marley, pelo fato de o jamaicano supostamente deixar-se instrumentalizar pelo maquinário da indústria cultural branca.
O livro de Moore termina com relatos sobre o velório e enterro de Fela, eventos que teriam mobilizado, em Lagos, multidões na casa do milhão. Se durante a vida Fela sofreu em mãos tão africanas como as dele, sua capacidade de se fazer ouvir por seus semelhantes, acima de todo e qualquer obstáculo, é algo que até hoje deve assustar, se não causar franco pânico, em várias localidades não-africanas deste mundo globalizado.
No Brasil, nossa "democracia racial" aguardou nada menos que 29 anos até se lembrar de traduzir Cette Putain de Vie pela simples, loquaz e certeira expressão Esta Vida Puta.
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