segunda-feira, 6 de junho de 2011

Estados do Tapajós e Carajás, primeiro passo para reorganizar o espaço amazônico?

No Blog de Manuel Dutra

Santarém
Marabá

O futuro Estado do Tapajós, na prática, já constitui uma unidade com vida própria, articulada em torno a cidade de Santarém. É também inegável a condição de auto-sustentação da área a ser destacada” (Comissão de Estudos Territoriais do Congresso Nacional, 1990).

 Idéias que vão brotando como que de um murmúrio anônimo, de uma voz sem nome e que, em determinado momento, formam os elementos que vão sendo utilizados na elaboração de uma identidade regional. É a exclusão provocando reações e buscas de soluções locais.

O artigo que segue é parte de um texto maior, que produzi no ano 2000, e não publicado ainda. A análise enfatiza o Estado do Tapajós, pois naquele momento o Carajás apenas entrava no debate.

O aspecto econômico-financeiro é apenas um item, importante mas não decisivo, a ser levado em conta no embate pela criação do Estado do Tapajós. Todo movimento regionalista busca suas próprias justificativas e a principal delas é a identificação de características particulares do povo que habita determinado espaço e que deseja chegar à autonomia. 

Não se trata necessariamente de procurar diferenças para se contrapor a outras regiões, mas de colocar em prática, dentro de certos limites físicos e institucionais, com reconhecimento jurídico, as suas especificidades, a fim de interagir em igualdade de condições com as demais regiões.

Uma das alegações freqüentes é o “tamanho” do Estado do Pará e a distância da região Oeste em relação a Belém, a capital. São questões importantes, mas não determinantes. Estados autônomos ou mesmo soberanos podem desenvolver-se mais pela clarividência de suas elites dirigentes e da organização de suas populações do que pelo tamanho físico de tais unidades territoriais. Tamanho de território não é necessariamente sinônimo nem de riqueza nem de pobreza da sociedade, valendo mais o modo como tal sociedade se organiza. O próprio Brasil e o continente americano têm bons exemplos. Porém, que a Amazônia inteira necessite de novos limites internos é idéia quase consensual, embora de difícil materialização em virtude da já demonstrada tradição centralizadora do poder político brasileiro.

No caso do Tapajós, a distância tem sido fator limitante por causa sobretudo da centralização histórica da vida econômica, política e cultural em Belém, cidade que antigamente era chamada também de Pará. Essa centralização, aliás, foi uma das fortes razões apresentadas pelos separatistas da Província do Amazonas quando, em 1832, tentaram separar-se do Pará por meio de um movimento revolucionário que, duramente reprimido, fracassou. Assim, trata-se mais de uma distância geo-econômica e política. Vejamos o que afirma Arthur Cezar Ferreira Reis a esse respeito, ele que foi um dos autores do Primeiro Plano Qüinqüenal da SPVEA (que mais tarde virou SUDAM), portanto no corpo de um documento oficial:

“Constituiu-se [em Belém] uma clientela, vivendo do esforço das populações interiores, mas só preocupada no domínio das regras de etiqueta ou dos conhecimentos jurídicos e, em menor escala, dos estudos de medicina e de engenharia, na medida em que eram requeridos para o funcionamento do sistema mercantil e da máquina burocrática. ... Sua atitude para com o interior era de indiferença e até mesmo de repulsa. As técnicas de produção extrativa, agrícola ou de pastoreio pesavam exclusivamente sobre aqueles que as exerciam diretamente. Não era tarefa de doutores” (SPVEA, 1955: 274).

             É essa, essencialmente, a distância entre a capital e o interior. Belém foi, no passado, uma cidade de grande importância no contexto nacional e internacional, especialmente a partir do auge da exploração e exportação da borracha.

 A capital paraense continua com seu peso específico dentro da região amazônica, seja por sua posição geográfica, pela extensão de sua área metropolitana e por sua expressão populacional, por sua tradição como centro de cultura e de ciência e por suas instituições de ensino. No conjunto, são instituições indispensáveis para desenvolver o conhecimento sobre a Amazônia. Todas essas excelentes qualidades, no entanto, não impediram esta grande cidade de estar, por assim dizer, mais voltada para o litoral do que para seu interior.

              Historicamente, em Belém formou-se uma poderosa elite cujos interesses básicos eram externos, aspecto, aliás, que caracteriza a formação sócio-econômica da Amazônia inteira desde sua ocupação original. Assim, aquelas elites econômicas e políticas somente tinham do interior da região o interesse pelos recursos para exportação, sem preocupar-se com a formação de uma economia para dentro, capaz de construir aquilo que poderíamos chamar de uma civilização amazônica; no campo político, o interior do Estado se torna visível com a aproximação de eleições. Por isso, não existe uma prática de políticas públicas de valorização econômica do interior que, desassistido, reproduz-se, com seus valores e riquezas tradicionais e seus imensos problemas, nos bairros pobres e nas baixadas da área metropolitana.

Comparado a um organismo biológico, seria um Estado macrocéfalo, cuja cabeça em dimensões anormalmente grandes, divorcia-se dos demais membros do corpo, mirrados, e sobre os quais exerce pouco ou nenhum controle. A constatação existente no relatório da SPVEA é resultado dessas situações históricas.

Quem conhece os principais municípios do interior, percebe insatisfações. No campo empresarial, por exemplo, são freqüentes as queixas da Associação Comercial de Santarém sobre o que a entidade considera um privilégio de firmas estabelecidas na capital, no tocante às compras feitas por repartições públicas estaduais e também quanto à prestação de serviços e à construção civil. Em abril de 1995, a diretoria da Associação Comercial reuniu-se, em Santarém, com o governador Almir Gabriel e alguns parlamentares, ocasião em que mostrou que as casas comerciais e as firmas construtoras locais eram habitualmente perdedoras de concorrências públicas do Estado. Receberam a promessa de que a situação mudaria, dando melhores oportunidades às firmas de Santarém.

Em junho do mesmo ano, no entanto, um expediente da Associação Comercial, endereçado ao governador, dá conta de que aquele compromisso não estava sendo cumprido, citando, inclusive, entre outros exemplos, que o comando da Polícia Militar do Estado estava licitando preços na praça de Belém para compras destinadas ao quartel de Santarém, em detrimento das firmas locais (Licitação, 1995).

             Em outro momento histórico, quando o mapa do Pará era ainda fisicamente maior, a “distância” também motivou outras reclamações e pleitos por autonomia. Em 1920, grupos da região paraense que hoje é o Estado do Amapá, utilizaram uma linguagem parecida com a que hoje é empregada pelos que pretendem criar o Tapajós, embora pleiteassem a separação do Pará para, a exemplo do Acre, tornar-se um território federal, o que de fato ocorreu em 1943, por ato do presidente Getúlio Vargas:

“Exmo. Sr. Presidente da República: os abaixo-assinados, fazendeiros, comerciantes, funcionários civis, artistas, operários e representantes de todas as classes populares, com residência fixa no município de Montenegro, ex-Amapá, no Estado do Pará, cansados de suportar a incúria, o desleixo, o esquecimento e o abandono dos dirigentes públicos por este feracíssimo trecho da Pátria que o laudo de Berna, em 1o de dezembro de 1900, integrou ao Território Nacional, vêm respeitosamente pedir a V. Ex. que, tomando a União o encargo de povoar e desenvolver as forças naturais da região, faça uma administração totalmente federal, a exemplo do que o governo do país praticou no território do Acre” (Reis, 1949:178).

 No presente, Belém continua a ser o grande pólo atrator de maior parte do interior do Estado, embora já sofrendo sensível concorrência de Manaus, na sua banda Oeste, e de outras cidades, em referência ao Sul do Pará. Não se pode, porém, desconhecer que a tendência centralizadora do passado permanece no presente, pois, como centro urbano importante, a região metropolitana de Belém contrasta brutalmente com o interior do Estado, a partir de suas cidades mais destacadas.

A distância é imensa no sentido econômico, no aspecto urbano e cultural; na vida política os representantes mesmo de municípios importantes apresentam uma dependência acentuada dos grupos de poder sediados na capital.

Importantes cidades, por exemplo, como Santarém e Marabá, somente saíram da rotina do primitivismo tradicional, do atraso que caracterizava (e ainda caracteriza) muitas comunidades da região, de alguma forma penetrando numa espécie de modernidade amazônica, com a implementação de planos federais de desenvolvimento a partir da década de 1970. Se aquelas cidades, além de outros núcleos urbanos, fossem esperar por investimentos estaduais, não teriam chegado nem a novas condições de existência nem estariam vivendo os problemas urbanos que caracterizam a contemporaneidade. Dessa forma, quando o movimento por emancipação aborda a questão da “distância” põe em campo um conceito que, de longe, extrapola a mera noção de distância físico-geográfica.

Assim, esse distanciamento mais espiritual, mais cultural do que físico, com seu componente econômico, vem construindo, ao longo da evolução histórica das comunidades interioranas, dois modos de ver o mundo, que se transformam em projetos de vida: ou a evasão para a grande cidade ou, como no caso de Santarém e demais municípios do Oeste, produzindo o desejo de emancipar-se politicamente. Idéias que vão brotando como que de um murmúrio anônimo, de uma voz sem nome e que, em determinado momento, informam os elementos que vão sendo utilizados na elaboração de uma identidade regional. É a exclusão provocando reações e buscas de soluções locais. 

Não seria casual que o Relatório da Comissão de Estudos Territoriais identificasse que, no caso do Tapajós, já existe uma “individualização do espaço objeto da divisão, em relação à capital do Estado no qual se acha inserido. Entende-se essa particularidade da área não apenas quanto às ligações internas, mas também nos aspectos culturais e vida econômica”.

A Comissão identificou, em 1990, que “o futuro Estado do Tapajós, na prática, já constitui uma unidade com vida própria, articulada em torno a cidade de Santarém. É também inegável a condição de auto-sustentação da área a ser destacada”. Outro ponto que identifica a região como dotada de vida própria, segundo a Comissão, é a semelhança interna do ponto de vista geográfico, social e econômico. “Nesse ponto, as propostas contam com o apoio da regionalização do espaço amazônico em microrregiões, constante de estudo realizado pelo IBGE. Na quase totalidade das propostas, os contornos de novas unidades territoriais [na Amazônia] acompanham as microrregiões definidas para aquelas áreas”.

A Comissão vê, portanto, uma “individualização” do espaço do Oeste do Pará, e a palavra espaço aqui significa mais que espaço físico, mas sobretudo espaço social, isto é, o lugar onde vivem pessoas em sociedade, que trabalham e que têm aspirações presentes, historicamente construídas.

A criação dos Estados do Tapajós e Carajás bem poderá ser um primeiro passo para a reorganização do espaço amazônico.
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