Por Mauro Santayana
Em política nada ocorre por acaso, embora o acaso possa ajudar nos projetos de poder. Essa constatação é mais freqüente nas relações internacionais. Constatação inquietante, no caso do incidente entre a Colômbia e o Equador é a de que a operação militar foi deflagrada no momento em que a França negociava diretamente com Reyes a libertação de Ingrid Betancourt.
Há que se presumir que as Farc, até mesmo por tática política, estavam buscando alternativa à mediação de Chávez. Os contatos com Chávez e a operação de libertação dos outros reféns haviam vulnerado, de uma e de outra forma, a segurança dos guerrilheiros. Tudo indica que eles preferissem - como alguns observadores sugeriram - negociar a libertação da senhora Betancourt e de outros reféns, mediante o Equador. Houve, em terceiros países, encontros entre representantes das Farc e emissários de Quito, o que é natural em situações semelhantes. Do ponto de vista político, logo depois de obtida, com a ajuda de Caracas, a última libertação de reféns, convinha às Farc afastarem-se, com discrição, do presidente da Venezuela. Urgia negociar com o governo francês o modo de libertar a Senadora, no momento enferma. Quando mais depressa pudesse libertá-la - desde que não lhe fora possível fazê-lo antes - melhor seria para a ação militar e política das Farc.
É nesse momento que entra em jogo outro e importantíssimo fator: o interesse direto de Washington em dificultar o envolvimento do Elisée e do Quai d'Orsay na região. Sabendo-se que as operações militares do governo de Bogotá são assessoradas, há décadas, por conselheiros norte-americanos, seria de esperar que os setores da inteligência do Pentágono e da CIA agissem rapidamente, e em conjunto, para a localização dos guerrilheiros e a operação que os matou. E é preciso suspeitar que os documentos "apreendidos" pelos colombianos com Reyes sejam tão autênticos quanto as armas de destruição em massa de Saddam Hussein. É inverossímil - e, portanto, improvável - que Reyes levasse consigo, em missão, tão delicada quanto perigosa, ao território equatoriano, supostas anotações sobre a ajuda de Chávez à guerrilha e fuzis de brinquedo para treinamento. Chega a ser estúpida a hipótese de que as Farc fossem fabricar munições radiativas em plena selva. Especialistas em fabricá-las e usá-las são os ianques, como se viu nos Bálcãs.
Os Estados Unidos continuam movidos pelo enunciado do Destino Manifesto (de 1845) e da Doutrina Monroe (1823). A Doutrina Monroe não chegou a ser aplicada, embora fosse invocada, em 1867, para pressionar a França a abandonar suas pretensões no México. Em 1898 voltou a ser reivindicada na Guerra contra a Espanha - e se perverteu de vez, em 1904 - com a mensagem de Theodore Roosevelt ao Congresso. Nesse documento, conhecido como Corolário da Doutrina Monroe, os Estados Unidos se arrogam o direito de intervir na América Latina, quando considerem que qualquer governo da região não aja "corretamente".
O discurso de Bush, ao reiterar apoio a Bogotá, e considerar legítima a violação do território equatoriano, sob o pretexto do "direito de perseguição", deve ser entendido em Paris como advertência a Sarkozy. A França tem seus interesses na área, com a velha presença na Guiana. Qualquer conflito ali a obrigará a nele envolver-se, sob o risco de perder o departamento ultramarino.
É velha a constatação de que é preciso manter, até a exaustão, as conversações em busca do entendimento. E outro velho aviso recomenda restringir-se a área do conflito, buscando a neutralidade dos vizinhos. A diplomacia brasileira está bem preparada para agir. Trata-se também de oportunidade para que os países da América Latina dispensem a tutela do big stick de Ted Roosevelt e as tentativas recolonizadoras da Europa, tão claramente expostas pelos espanhóis, sob a presunção imperial de Juan Carlos. Não entende o Bourbon que uma coisa é nascer Carlos V e legar o reino e o Império a Filipe II; outra é dever o trono ao fascista Francisco Franco.
A proposta do presidente Lula - que poderia ter sido formulada por Rio Branco - de se criar organismo regional de segurança da América do Sul, é a primeira reação, serena e firme, a fim de que o continente dispense, de vez, a tutela européia e norte-americana sobre a região. Não cremos em destinos manifestos, mesmo porque o nosso é o de conquistar o que já temos, mediante a ocupação dos grandes vazios geográficos internos. Mas, para proteger a própria soberania, devemos contribuir para que a soberania dos outros também seja preservada, no Equador, como na Tríplice Fronteira. A isso podemos chamar diplomacia responsável - e estrategicamente pragmática.
Por Mauro Santayana
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