quinta-feira, 11 de agosto de 2016

“A PF ME DEVOLVEU ALGUNS PAPEIS E EU NÂO SEI DO QUE SOU ACUSADA”: CLARA ANT, DIRETORA DO INSTITUTO LULA


Clara Ant

Filha de judeus que fugiram da Segunda Guerra Mundial, 
nascida em La Paz, na Bolívia, Clara Ant (68) é a atual diretora 
do Instituto Lula. Militante histórica do PT, ex-deputada 
estadual, fundadora da CUT e arquiteta pela FAU-USP, Clara 
teve um mandado de busca e apreensão em sua residência no dia 
da condução coercitiva do ex-presidente Lula, 4 de março.


A Polícia Federal bateu em sua casa às 6h da manhã. Cinco agentes confiscaram dois celulares e dois computadores, um notebook convencional e um MacBook da Apple, além de documentos e HDs com fotografias de suas viagens.
Cinco meses depois, a PF só enviou os dados num HD espelhado e algumas folhas de documentos. Clara Ant não sabe do que é formalmente acusada. Lula virou réu na Operação Lava Jato no dia 29 de julho.
O DCM conversou com ela no Ipiranga, onde fica a sede do instituto. Clara contou sua história com a polícia, como o ex-presidente está lidando com as investigações e qual é, hoje, o papel da instituição.
DCM: O número de palestras de Lula com o Instituto caiu muito depois das denúncias da Lava Jato? Como está o ritmo?
Clara Ant: Houve uma redução de atividades em 2014 previsível em ano eleitoral. Em 2015, a conjuntura foi dominada pela crise política. O Instituto Lula mantém as iniciativas com países na África e na America Latina, bem como o trabalho do Memorial da Democracia que está dando sequência a dois novos módulos.
É diferente trabalhar hoje com a pressão e a criminalização das nossas atividades ao comparar com o começo do Instituto Lula. Naquele tempo, o ex-presidente saiu do governo com aprovação recorde e fez sua sucessora.
Eu não saberia te dizer se houve uma diminuição drástica das palestras. Mas estamos lutando para manter as iniciativas funcionando. As nossas atividades acontecem.
DCM: Como está Lula depois que se tornou réu?
CA: Lula está triste com o que está acontecendo no país, inclusive fazendo o que pode para ajudar a Dilma. Eles estão rebaixando a autoestima do brasileiro e provocando desconforto. Essa é uma boa palavra para descrever o que acontece hoje.
O ex-presidente foi reclamar do processo na ONU para continuar batalhando por sua história em órgãos no exterior. Aquele suposto historiador Marco Antonio Villa resume bem o que está acontecendo: há uma tentativa de tentar alterar a biografia do Lula.
Nós, do Instituto, e ele próprio, estamos lutando para que isso não aconteça. Não é justo com os brasileiros que subiram de vida, não é justo com estudantes que conseguiram ir para o exterior, fora diversos setores produtivos e empresariais.
DCM: O que aconteceu com seus celulares e notebooks apreendidos em março? A Polícia Federal devolveu? Do que você foi acusada?
CA: Eles devolveram um HD com meus dados espelhados, que eu pedi três meses depois, junto de algumas folhas com anotações. Só devolveram porque eu fiz uma solicitação para a PF três meses depois, quando não obtive resposta sobre os meus pertences. E eu não sei do que fui acusada.
DCM: Qual é a sua história com o PT? 
CA: Sou filha de judeus poloneses sobreviventes da Segunda Guerra e só cheguei ao Brasil quando tinha 10 anos. E quando vejo a angústia dos refugiados na Europa hoje, lembro muito da perseguição que a minha família enfrentou.
Meu pai gostava muito de falar de política, embora não fosse militante, vendo o Repórter Esso. Aqui eu conheci um grupo de meninos que se diziam socialistas e eu perguntei qual era a diferença disso para o comunismo. “Eles também defendem a liberdade”. E foi assim que fui me tornando de esquerda.
Quando aconteceu o golpe de 64, eu já o entendi como golpe. Por isso é assustador ver o que está acontecendo com o governo da Dilma hoje. E eu passei a participar de tudo o que era contra os militares. Estudei Marx, além do livro “Dependência e Desenvolvimento da América Latina” do Fernando Henrique Cardoso. Participei das Setembradas de 1966, dos movimentos estudantis e conheci o José Dirceu nos discursos dele no Largo do Paissandu.
Em 74, ao entrar no curso de arquitetura na FAU-USP, eu fiz parte da Organização Socialista Internacionalista (OSI), que era trotskista e tinha o movimento dos estudantes do Liberdade e Luta (Libelu). Ao me formar, entrei na direção do sindicato dos arquitetos, fiz parte das articulações intersindicais e conheci o Lula para ver a greve de 1977.
Fundei, junto com diversos companheiros, o PT e a CUT a partir de 80. Na formação da Central Única dos Trabalhadores, só tínhamos eu e outra dirigente como mulheres em posições de liderança. E fui deputada estadual até 1991. Depois fui assessora do Lula e cheguei a ser tesoureira de campanha em 98.
DCM: Como surgiu o Instituto Lula?
CA: Em 1989, Lula foi até o segundo turno contra o Collor, perdeu e a frente política que o apoiou, por incrível que pareça, tinha o Mário Covas, o Roberto Freire e muita gente que hoje discursa contra o PT. Com Fernando Collor na presidência, o Lula propôs uma gestão paralela na mesma época, inspirada no “shadow cabinet” do Reino Unido, que é um pouco antiquado e faz mais sentido num regime parlamentarista.
Esse grupo de oposição acompanhou tudo diante do governo e, quando ocorreu uma crise, e fez propostas. Eu acompanhei isso a distância, como deputada estadual, e vi até o Cristovam Buarque, que hoje vota pelo impeachment da Dilma, como ministro paralelo da Educação.
Depois do projeto do Josué de Castro, médico que faleceu em 73, nosso grupo foi o primeiro a fazer uma iniciativa relevante de combate à fome. Este foi o Programa Nacional de Segurança Alimentar coordenado pelo José Gomes da Silva, que foi presidente do Incra durante o governo Sarney e pai do José Francisco Graziano.
Quando o Collor sofreu impeachment, o Lula levou este projeto ao então presidente Itamar Franco. Ele surgiu de dois comitês: o de Combate à Fome, que foi liderado pelo Betinho por sugestão do Itamar e do próprio Lula, e o de estudos estruturais. Aquele foi o embrião do Fome Zero do primeiro governo do PT.
As reuniões aconteceram nesta casa onde está o Instituto Lula hoje, que foi apontada em supostas reportagens como fosse comprada por milhões há pouco tempo. Na verdade nós sempre nos reunimos aqui. Começou com o nome Instituto de Pesquisa e Estudos de Cidadania (Ipec), que tinha o nome fantasia de Instituto Cidadania.
A origem do Instituto vem da vontade do próprio Lula de criar projetos para o país. Era uma usina de iniciativa nos anos 90, durante as duas tentativas de chegar à presidência. A entidade abriu portas para articuladores políticos de fora do PT, democratas e progressistas em geral.
Organizamos também o Projeto Moradia, reunindo arquitetos e urbanistas, incluindo o próprio Nabil Bonduki. Ele foi a engenharia do Minha Casa, Minha Vida da Dilma, que foi muito mais elaborado. Depois veio o Fome Zero no primeiro mandato do Lula, com o José Graziano, seguido por um Projeto de Segurança Pública que teve participação de policial militar vinculado ao PSDB, juristas e promotores públicos.
Nesta etapa, o Instituto Cidadania já estava auxiliando o governo federal com projetos. E peço que você preste atenção nisso: em 2001, antes do Lula virar presidente, nós já tínhamos um Projeto de Reforma Política. Esse livro foi distribuído para cada um dos parlamentares e ele fez ainda um discurso diante dos deputados. “Não cabe a mim, do Executivo, criar essa reforma política. Cabem aos partidos tocarem isso”, disse o Lula. Você já ouviu falar deste projeto?
DCM: Não. Nunca ouvi falar.
CA: Pois é. Com o Paulo Vannuchi dirigindo o Instituto, também fizemos o Projeto Juventude com o Lula no governo, além do desenvolvimento local. Detalhei todas essas coisas para que se entenda o trabalho do ex-presidente e do PT na construção de políticas sociais para o país. O Lula chegou para governar com um projeto claro para contemplar quem estava sofrendo, além de ter a democracia como um pilar de existência.
Atualmente o Instituto é criminalizado, junto com o próprio Lula. E não é divulgado que entidades deste tipo entre ex-presidentes é comum. Participei ativamente das atividades desde o fim das eleições de 1998 e vi a entidade se tornar o Instituto Lula em 2011. O ex-presidente então promete continuar com suas atividades fora do governo. As pautas do Instituto permaneceram, mas o Lula deu foco em três diretrizes.
Ele aprofundou na integração latino-americana, como ocorre na Unasul; na disseminação dos programas sociais brasileiros nas políticas públicas da África, unindo-se com ações de ONGs que já estão na região; e a construção de um Memorial da Democracia, que seria um prédio doado pelo Kassab na frente do Memorial da Resistência no centro. Dos três, o último objetivo foi suspendido pelo Ministério Público. Ao invés disso, fizemos o Memorial da Democracia de forma virtual.
DCM: Como funcionam, atualmente, as palestras pagas do Lula?
CA: O meu principal trabalho atualmente é cuidar da agenda das atividades do Instituto Lula, que envolve um trabalho meu e de três funcionários. Nós vendemos determinadas palestras e providenciamos tudo, desde avião até tradutores e o que for necessário.
O que muitos não sabem é que, para cada aparição paga que o ex-presidente faz, muitas outras apresentações são gratuitas. Em 2011, por exemplo, ele recebeu o título honoris causa na Science Po, faculdade na França. Naquela viagem, ele fez uma palestra paga para investidores no Santader e mais três aparições públicas sem pagamento.
Um dos trabalhos principais do Instituto Lula é justamente organizar a logística dessas atividades, o que não é fácil no caso de uma pessoa atarefada como ele é.
DCM: Por que os projetos com a África são criminalizados?
CA: As pessoas não deveriam desdenhar iniciativas de combate à fome, que foi o nosso foco no continente africano, porque a população de lá precisa combater esse mal com pressa. É fácil jogar pedras contra os governos africanos, mas o Lula no governo tinha uma lógica. Ele sempre colocou nas reuniões do G20 que se os países europeus investissem na melhoria da África, isso resolveria duas coisas: o padrão de vida iria subir e eles deixariam de poluir.
Não foi por acaso que o Lula ganhou o prêmio World Food Prize, sendo o primeiro governante não estudioso a receber tal reconhecimento. Ele não fez pirotecnia pra conquistar isso, mas abriu escritório do Embrapa e tomou frente de medidas efetivas. Os golpistas então atacam esses projetos porque vale tudo pra atacar o ex-presidente Lula.
DCM: A senhora vê as mulheres com um papel importante, e nem sempre reconhecido, contra o golpe?
CA: Penso que as mulheres tiveram um papel fundamental, principalmente no ano passado, para evidenciar o papel nefasto do senhor Eduardo Cunha. Há um recorte de lutas femininas no século 20 de controle do próprio corpo, enquanto este senhor e o governo temer simplesmente removem isso. É uma ofensa e um ataque muito grande.
Por isso existem mobilizações muito fortes e muito espontâneas neste processo de impeachment pela intervenção de Cunha desde o começo. Foi um grito de mulheres que tiveram suas liberdades ceifadas. Essas manifestações serviram para mostrar quem é Eduardo Cunha e desde então ele não conseguiu se recuperar politicamente. Esperamos que ele não se recupere nunca.
Isso foi o que aconteceu no ano passado. Agora há um esforço conjunto de mulheres e dos jovens para defender o mandato da Dilma, os setores mais beneficiados nos últimos anos.
Essas pessoas mostraram como políticos como o Eduardo Cunha e o governador Geraldo Alckmin machucam a sociedade ao retirar seus direitos sociais com preconceito e autoritarismo. O volta Dilma, ou o fica Dilma, carrega uma simbologia que significa: fora Cunha e todos os políticos da sua estirpe.

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